Via Observatório da Imprensa
Por Mauro Malin
24.12.2012
Um professor veterano da Universidade do Texas, Charles “Chip” Groat, pediu
demissão ao final da revisão de um estudo que conduziu sobre o processo de
perfuração do solo conhecido como fracionamento hidráulico (“hydraulic
fracturing”, ou “fracking”). A informação saiu em reportagem
do site StateImpact Texas no dia 6 de dezembro.
O relatório original de Groat, divulgado em fevereiro de 2012, tratava de
extração de gás de xisto (“Fact-Based
Regulation for Environmental Protection in the Shale Gas Development”).
Concluía não haver relação entre método de perfuração e contaminação da água. O
que o autor não revelou é que ele integrou o conselho de uma empresa de
perfuração durante todo o tempo que durou o estudo, o que lhe valeu receber US$
1,5 milhão em cinco anos. A revisão encontrou erros de elaboração, além de
outras falhas na maneira como o relatório foi divulgado.
Fórum Mundial de Ciência
Ética na ciência e na comunicação de ciência é um dos grandes temas propostos
para a discussão da participação brasileira no sexto Fórum Mundial de Ciências
(FMC), que se realizará no Rio de Janeiro em novembro de 2013 (veja informações
sobre o evento em http://fmc.cgee.org.br/). Uma entrevista e um
artigo trataram do assunto em edições recentes deste Observatório (“Comunicação
científica para um público mais atento” e “Ciência
em tom jornalístico”).
A preparação brasileira para o FMC incluiu até agora quatro encontros
preparatórios, realizados em São Paulo, Belo Horizonte, Manaus e Salvador. Nesse
último, a médica Eliane S. Azevêdo, professora emérita e ex-reitora da
Universidade Federal da Bahia (UFBA), em palestra sobre “Desafios da Ética e
Integridade Científica”, falou sobre a influência da ciência na definição de
políticas públicas nas áreas da saúde pública, medicina, clima, ambiente,
agricultura, energia, influência que amplia a exigência de ética na condução e
na divulgação das pesquisas.
Dois fenômenos foram destacados pela professora: o crescimento do número de
desvios éticos em publicações científicas e subsequente retratação pública de
artigos publicados, e o custo da má prática em ciência, assunto novo, abordado
com rigor e clareza pela palestrante.
A professora Eliane concordou em dar a entrevista abaixo, feita por correio
eletrônico, na qual ela destaca que as fraudes mais graves são produzidas por
pesquisadores de primeiro time, por isso sua detecção é mais difícil, custa mais
caro e demora mais, do que resultam danos mais extensos e profundos.
Em relação aos meios de comunicação, a ex-reitora diz que “as desonestidades
mais graves, isso é, fabricação e ou falsificação de dados são preferencialmente
publicadas em revistas de alto impacto (Science, Nature,
Cell etc.).”
Mais fraudes, vigilância intensificada
O aumento do número de retratações, observado em pesquisa que a senhora
mencionou em sua apresentação, indica acréscimo da ocorrência de comportamentos
fraudulentos ou intensificação da vigilância?
Eliane S. Azevêdo – Creio tratar-se de uma confluência de
fatores dentre os quais intensificação da vigilância e aumento de ocorrência,
conforme lembrado. Esses fatores, todavia, estão interligados a variáveis
causais como pressões institucionais por publicações; obsessão em atendê-las;
competição por recursos; prestígio conferido a currículos longos; crescente
número de pesquisadores; ambições pessoais sem crivo moral, etc. Além disso,
ações educativas para a boa prática científica ainda são incipientes e até mesmo
ausentes em muitas instituições universitárias, grupos de pesquisa, cursos de
pós-graduação, editores de revistas, etc.
A senhora diria que falhas de filtragem de artigos em revistas
científicas tendem a ser magnificadas em jornais e revistas, cujos filtros
costumam ser muito mais precários?
E.S.A. – As editoras de revistas científicas e seu corpo
editorial compartilham igual responsabilidade social na divulgação de boa
ciência, isso é, ciência sem fraudes, fabricação, falsificação, plágios,
autoplágios, duplicações, fatiamentos, etc. A criação do COPE (Commitee on
Publications Ethics) em 1997, na Inglaterra, e ampliação à Wade (World
Association of Medical Editors) com objetivo central de prover editores e
revisores com conhecimentos para melhor lidar com situações suspeitas de desvios
éticos na pesquisa, traduz a importância do problema sob o olhar das revistas
científicas. Infelizmente, não se trata de uma prática dos editores em todos os
países, e suspeitamos ser praticamente inexistente em jornais e revistas de
divulgação.
As revistas científicas devem funcionar como a última barreira na filtragem
ética. Se falha a filtragem e a publicação é reproduzida em jornais e revistas
dificilmente haverá reversão de danos com a retratação.
No Brasil, cientistas alertam imprensa
Ao que tudo indica, a grande imprensa brasileira está alheia à extensão
dos prejuízos causados pelas falhas éticas em publicações científicas. A senhora
concorda com essa hipótese?
E.S.A. – Ainda que esteja alheia a uma avaliação criteriosa
dos prejuízos, não está alheia à existência das questões da integridade
científica. Existem cientistas brasileiros alertando e até mesmo conclamando por
ações educativas e ou de vigilância. Considero urgente que, no Brasil, a geração
atual de pesquisadores íntegros aponte os danos intelectuais, morais e
financeiros gerados pela má prática científica e agregue reflexões pertinentes
aos ensinamentos que transmite aos alunos. Existe ampla literatura internacional
sobre o tema, inclusive com estudos de meta-análise sobre artigos retratados e
formulação matemática para cálculo do custo financeiro de um artigo retratado.
[Meta-análise, segundo o criador do termo, Gene Glass, é “uma análise
estatística de grandes coleções de resultados de estudos individuais com o
propósito de integrar os achados desses estudos”; fonte: Wikipedia.]
O perfil dos desonestos em ciência já começa a ser desenhado: não são
intelectualmente medíocres; as desonestidades mais graves, isso é, fabricação e
ou falsificação de dados são preferencialmente publicadas em revistas de alto
impacto (Science, Nature, Cell etc.). Quando a má
prática é menos grave, por plágio ou duplicação, a preferência é por revistas de
médio impacto. Essas associações são relatadas com significância estatística.
Assim, a ocorrência e o tipo de má prática em ciência têm certa aderência ao
nível intelectual dos desonestos. O recorte moral dos cientistas atuais parece
não diferir do resto da humanidade... Teríamos sido diferentes no passado?
Confiamos que melhoremos no futuro...
Demora agrava prejuízos
Fale sobre as consequências negativas da demora entre a publicação de
texto fraudulento e a retratação.
E.S.A. – Começamos a pensar sobre essa associação em 2009,
quando lemos na newsletter do Office of Research Integrity (ORI) o
relato de dezesseis artigos retratados, todos da autoria de dois pesquisadores
americanos e publicados entre os anos de 1997 e 2005. Entre o início das
publicações e a data das retratações passaram-se doze anos, período suficiente
para que se construísse uma corrente de pensamento médico e práticas de ensino
fundamentadas na consulta a artigos de revisão ou de meta-análise. Assim,
resolvemos verificar através do repositório PubMed. Encontramos não apenas um
longo trabalho de revisão com quatro citações dos artigos retratados, mas,
também, o próprio texto da revisão tecia elogios aos trabalhos dos dois
pesquisadores, agora reconhecidos como desonestos. Imaginamos que quanto maior o
tempo decorrido entre a publicação fraudulenta e sua retratação mais se difundem
danos irreparáveis à ciência. Com essa visão, escrevemos à direção do ORI, que
publicou nossas considerações na newsletter de dezembro de 2009.
Estudos recentes (Fang e col. 2012) demonstraram que o tempo entre a publicação
e a retratação é em média de dois anos nos casos de plágio e de quatro anos nos
casos de fraudes.
Plágio e fraude
Que mecanismo está por trás da constatação de que “quanto pior o tipo de
fraude, mais tempo ela demora para ser reparada”.
E.S.A. – Os casos de plágios podem ser detectados por
qualquer pessoa e comprovados mediante comparação dos dois textos: original e
plagiado. Além disso, já existem no mercado aplicativos com funções específicas
para detectar plágios.
Nos casos de fraudes, por outro lado, percorre-se penoso processo de
investigação que nasce com a denúncia de suspeita, verificação inicial por
comissão local da instituição, subsequente abertura de processo investigatório
por órgão credenciado. A investigação examina as anotações originais, entrevista
pessoas da equipe, além de conduzir o interrogatório aos pesquisadores
suspeitos. Tudo isso requer tempo/horas de competentes pesquisadores, advogados,
técnicos, burocracias, etc. e tem alto custo financeiro. É raro situações como a
de certo pesquisador que impediu o andamento da investigação sob a alegação que
os papéis com as anotações originais “o cupim comeu...” Por outro lado, não são
raros os pesquisadores assumirem-se culpados, conforme constatamos nos
relatórios públicos do ORI. Nos EUA, o ORI é órgão governamental com função
específica de receber denuncia de má prática científica, conduzir o processo
investigatório, divulgar as conclusões, indicar artigos para retratação e
aplicar as respectivas penalidades aos pesquisadores infratores. Infere-se,
assim, que quanto mais elaborada a montagem científica da fraude mais difícil
vencer as dissimulações do pesquisador desonesto.
O CNPq constituiu uma comissão de ética, mas, salvo engano, ela ainda não
teve oportunidade de examinar nenhum caso e de tomar alguma deliberação. Qual
sua expectativa em torno do trabalho dessa comissão? Os problemas de fraude são
graves no meio científico brasileiro?
E.S.A. – Temos conhecimento, sim, da criação dessa comissão.
Percebemos que criar uma comissão tenha sido o passo preliminar para posterior
instalação de um órgão ligado ao CNPq, mas independente, dirigido por pessoa de
alta qualificação moral e científica e em dedicação exclusiva, amparada por
competente equipe e infraestrutura investigatória, tudo isso bem protegido de
qualquer fluxo de influência. Acreditamos não ser fácil, porém, sem ser
impossível, criar-se algo semelhante ao ORI aqui no Brasil.
Desconhecemos estudos que indiquem a frequência de fraudes científicas no
Brasil. Casos isolados já vieram a público. Concluímos reafirmando que ações
educativas sobre integridade científica devem ser oferecidas, de imediato, na
formação de jovens em iniciação científica, nos cursos de graduação e de
pós-graduação, nos institutos de pesquisa, e paralelamente exigidas pelas
agencias de fomento e revistas científicas.
***
A apresentação da professora Eliane S. Azevêdo no 4º Encontro Preparatório
para o FMC, realizado em Salvador, pode
ser vista aqui (trata-se do penúltimo vídeo; a fala da professora começa
duas horas e 12 minutos após o início da exibição).