terça-feira, 23 de setembro de 2014

O que os olhos não veem o coração não sente
Por Helena Gonçalves


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Anoitece no Xingu - Setembro de 2014
foto: Helena Gonçalves

Caros,

entre 7 e 12 de setembro de 2014, estivemos no Estado do Pará, numa 'canoada manifesto' no trecho Volta Grande do Xingu, que já foi e será ainda mais, e barbaramente, impactado pela Usina Belo Monte (veja também aqui e aqui ).

Promovida pelo Instituto Sociambiental (ISA)  e  pela Associação Yudja Mïratu Xingu (AYMÏX), éramos cerca de 140 pessoas e 20 e poucas canoas tradicionais, guiadas por canoeiros, índios, e ribeirinhos, todos muito preocupados com a  BELA MONSTRA - nome pelo qual a usina também é conhecida -, seus estragos e suas ameaças!

Minha filha conseguiu relatar, com emoção, esta experiência incrível  que vivemos, e as discussões que realizamos nas rodas de conversas, que se faziam ao fim de cada dia de canoada.

A ideia é a de que o texto escrito por ela seja divulgado e, numa progressão geométrica, atinja mais e mais pessoas, para que não esqueçamos  do que ainda tem de ser feito, para que as condicionantes sejam cumpridas antes que se enterre definitivamente o assunto!

Além do site do  Instituto Sociambiental (ISA), se quiser saber mais sobre o que está acontecendo por lá, é  só entrar no facebook em um grupo denominado 'Canoada bye bye Xingu'.

Segue, abaixo, o referido texto.

Rosina  Revolta Gonçalves
Geóloga e Assistente Social





O que os olhos não veem o coração não sente


 
Belo Monte - Canteiro de obras - Setembro de 2014
foto: Helena Gonçalves


Às vezes a gente ouve uma história ou lê uma matéria do jornal, e não consegue saber direito o que pensar. Dependendo da pessoa (ou do tema) a reação é estudar um pouco e assumir com unhas e dentes uma posição ou outra, ou deixar o assunto pra lá…
Infelizmente, o que a maioria das pessoas faz é deixar o assunto pra lá. Não digo ficar em cima do muro, porque o muro às vezes tem uma visão privilegiada dos dois lados, que por isso pode ser mais neutra. Me refiro a deixar o assunto para lá, fingir que não é contigo.
Fingir que não é contigo é muito fácil quando a questão está aparentemente distante dos seus olhos e da sua rotina. Mas nem sempre está mesmo.
Tem outros que nem ficam sabendo e vivem felizes em sua ignorância.
Anos atrás, tive a chance de estudar um pouco uma história. Assumi com unhas e dentes uma posição (e foi só o que fiz). Mas quando uma batalha foi perdida, acabei deixando o assunto pra lá. Afinal, a gigante Usina Hidroelétrica de Belo Monte, apesar de tudo, começou a ser construída.
Na semana passada, fui ver essa história de perto.
Desde antes de escolher minha profissão ouço pessoas desvalorizarem minha preocupação com o meio ambiente, priorizando as questões sociais, como se eu estivesse escolhendo uma coisa à outra. Essa história que vi de perto deixa mais claro do que qualquer outra que sociedade não se faz sem meio ambiente. E que a luta social não pode ser desvinculada da luta ambiental.
O que vi foi um povo trabalhador, forte, alegre e hospitaleiro. Uma gente que não reclama de cansaço (mesmo depois de remar mais de 8 horas por dia) e responde aos gemidos de cansaço alheio só com palavras de incentivo. E na hora reservada para o descanso, ainda tem pique pra jogar bola, lavar roupa e cuidar de filho.
Vi uma gente cheia de história e de cultura, que lhes roubaram, e por isso tentam, a duras penas, recuperar. Vi uma gente que vai ver seu meio de vida e de locomoção secar, e mesmo assim não é considerada diretamente afetada por esta mudança.
Vi um rio Xingu caudaloso fazer uma volta grande, exuberante e repleta de vida. Vi praias, cachoeiras, peixes, tracajás, aves… Vi patas de bicho que quase preferia não ter visto. Vi de longe castanheiras se imporem sobre a vastidão da floresta e sumaúmas molhando o pé na água. Vi o sol nascer e se pôr como pinturas no céu.
Mas vi também uma cidade suja, insalubre e desigual. Uma cidade que por décadas cresceu desordenadamente ecoando as promessas de uma grande obra. E que espera, ansiosamente, que promessas feitas de uma vida melhor sejam cumpridas. Uma cidade de 100 mil habitantes que viu chegar de repente outras dezenas de milhares sabe lá de onde. E estes migrantes, sabiam pra onde iam? Tinham algum vínculo com o rio e a floresta?
Não sei como era a cidade antes disso. Mas sei que disseram que a cidade ia melhorar. Piorar é que não ia. Ou poderia?
Também vi um rasgo bizarro de destruição, desmatamento e concreto. Vi um canal de mais de 20 quilômetros (e bem mais largo que o canal do Panamá) pra onde a água da Volta Grande do Xingu vai ser desviada. Vi madeira boa apodrecendo no canteiro de obras, enquanto enormes quantidades de madeira são compradas de outros locais para a obra, e caminhões que pareciam formiguinhas.
O que ouvi, foi que os peixes, só encontrados naquela região, estão desaparecendo. Que a água do Rio Xingu frequentemente fica barrenta devido às obras em suas margens. Ouvi explosões de fazer tremer bicho e gente, e vi um clarão permanente no que deveria ser o breu da floresta.
Ouvi a constatação óbvia de que o impacto de uma obra monstruosa não é só sobre as pessoas diretamente afetadas, como as mais de 20 mil pessoas foram removidas do local que será alagado e não estão sendo “realocadas” de forma adequada e os que vivem às margens do Xingu no trecho que terá a sua vazão reduzida (Belo Monte seca e alaga). Uma transformação como essa movimenta tanta gente e tanto dinheiro, que seu impacto é muito mais vasto. A região passa por um crescimento totalmente descontrolado, novos desmatamentos, aumento da exploração sexual e prostituição, saturação da rede hospitalar. O cumprimento das condicionantes do licenciamento da obra deveria minimizar isso.
Vi um helicóptero da Força Nacional rondando um grupo que só queria mostrar a sua voz. E protegendo um grupo que nem precisava de proteção…
Aprendi que a luta não acaba quando se perde uma batalha.
Belo Monte foi uma obra polêmica desde que começou a ser discutida, na década de 70. O projeto da terceira maior hidroelétrica do mundo foi tirado da gaveta pelo Programa de Aceleração do Crescimento. Essa é só uma das muitas obras planejadas na Amazônia.
A polêmica continua, e não é de graça:
• os povos indígenas atingidos não foram ouvidos, apesar de tal direito ser “garantido” pela Constituição Federal e pela Convenção 169 da OIT;
• o Ibama concedeu a licença ambiental apesar de parecer contrário de seus (próprios) analistas;
• o leilão foi realizado contrariando decisão do Ministério Público Federal;
• 3 anos depois do início das obras, as condicionantes (Condição, segundo definição do Michaelis é “Alguma coisa estabelecida ou combinada como requisito para que outra coisa seja feita ou entre em vigor; Obrigação que se impõe ou se aceita como parte essencial de um acordo”) estabelecidas na licença ambiental socioambientais (para minimizar e compensar o impacto da obra) não estão sendo cumpridas ou estão atrasadas há anos, diferentemente da obra, que está a pleno vapor;
• O BNDES está repassando normalmente os R$22,4 bilhões para financiar a obra, contradizendo o próprio contrato que determina a suspensão dos desembolsos caso as medidas antecipatórias e exigências ambientais estabelecidas no licenciamento da obra fossem descumpridas, e apesar das multas do Ibama.
Isso tudo foi possível graças a um instrumento criado em 1964 que permite que decisões judiciais sejam cassadas em nome da “ordem e economia públicas”, a chamada Suspensão de Segurança. Todas as decisões judiciais que mandaram parar a obra por descumprimento da legislação nacional brasileira foram derrubadas ou ignoradas, até que sejam julgadas.
Alguém duvida que quando tenham sido julgadas a obra já estará pronta? Inês será morta.
Não dá pra saber de tudo isso sem sentir indignação e um enorme sentimento de impotência.
Há mais de 20 ações na Justiça buscando suspender as licenças concedidas ou cobrar o cumprimento das condicionantes, como a instalação de saneamento básico nas cidades da região. Quando estive em Altamira, na semana passada, o esgoto ainda corria a céu aberto.
Foi uma experiência profunda. De aprendizado, de encantamento, de alegria em poder conhecer um lugar tão lindo e pessoas tão especiais. Mas foi uma experiência que fez pulsar mais forte a revolta em relação aos absurdos que são feitos em nome do desenvolvimento a qualquer preço.
É claro que precisamos de desenvolvimento. E para desenvolver precisamos de energia, que tem que sair de algum lugar. Mas podia sair do próprio sistema se houvesse mais investimentos em eficiência e menos incentivos perversos (como desconto da conta de luz e IPI reduzido para veículos). Podia sair de outras fontes (do sol, do vento), que só são caras hoje porque não há o menor interesse em desenvolvê-las. Nossa matriz energética é manobrada por interesses privados (e quem dera se fosse só ela) e assim, as decisões passam por cima dos direitos humanos, do meio ambiente, da legislação, das condicionantes e até do ministério público. Por cima do interesse público.
Hoje nos resta continuar lutando: para que as condicionantes sejam cumpridas e para que as próximas obras sejam planejadas e executadas de outra maneira.
Pra quem ainda pensa que não tem nada a ver com isso, só queria lembrar que energia não é só pra acender a luz e tomar banho. Energia é utilizada para produzir todos os bens (necessários e supérfluos) que utilizamos todos os dias. O seu consumo está impactando SIM comunidades e ecossistemas não só na região norte do Brasil, mas no mundo todo.
E se a água está faltando no sudeste, colega, pode ter certeza que tem muito a ver com tudo isso – com os interesses que manobram as decisões políticas e com o estrago que estamos fazendo Brasil a fora.
Boa sorte pra nós.
Helena Gonçalves
Gestora Ambiental