Nesse dia de recolhimento, que um dia será nosso também, acordei pensando nos ausentes. Nos sorrisos, no jeito de andar, falar, no gestual, na retidão, na dignidade, com que caminharam pela vida. Todos se foram. Todos ficaram. Somatório, somos nós, de todos que passaram pelas nossas vidas.
Papai adorava cantar. Mamãe adorava fazer crochê. Aprendi a cantar. Não aprendi a fazer crochê. Me arrependo por isso. Papai se foi aos oitenta anos, há quase dezoito. Mamãe aos oitenta e quatro, há quase oito. Os dois não gostavam de tristeza. Vivi numa casa alegre, muito alegre, lá na Vila Tibério, numa casa de muita fé. Mais do que fé, numa casa de certezas inabaláveis, inquebrantáveis. Um lar. Um lar que era visitado por pássaros, borboletas, um lar inundado por flores e plantas de todos os tipos. Adoraria voltar no tempo só para desfrutar do ar que por lá se respirava. Voltar no tempo? Nem em minhas revoadas quânticas. Talvez um dia ainda aprenda, mas não tenho muita esperança.
Tudo o que meus pais me ensinaram, até mesmo a alegria, a alegria de verdade, a real alegria, a alegria de nos sabermos vivos, a alegria dos verdadeiros encontros, está fora de moda. Tudo se artificializou. Deus, Jesus, religião, amizade, lealdade, viraram commodities. Cômodas commodities. Cômodas commodities que, em ouvidos desavisados, se tornam virtudes, uma maneira de se safar vida a fora. Me causa constrangimento, uma profunda vergonha, um travamento físico, psíquico e emocional, quando a tevê nos mostra pessoas que rezam antes de saírem para assaltar, matar, fingir que são gente de bem. Me causa constrangimento, uma profunda vergonha, um travamento físico, psíquico e emocional quando vejo pessoas - e são tantas e tantas -, que destroem tudo o que é belo em nome de um progresso raso, que exclui, sujeita, manipula, corrompe, desagrega. E muitos e muitos fazem isso em nome de Jesus. Pobre Jesus. Tenha ele existido, ou não, pobre Jesus.
Na minha casa da Vila Tibério, pouco se falava em Jesus. Não precisava. Ele estava introjetado em nossas mais profundas devoções. Daquela época, lembro de um quadro que existia na casa de um dos meus tios. Era um Jesus com o peito eviscerado. Coração exposto. Muito semelhante à imagem que ilustra este post. E é dele que sempre me lembro quando ouço a palavra Jesus.
Meus pais me ensinaram - e eles não precisaram de muitos anos de estudo para isso -, o que era civismo. Não tanto com palavras, mas com atitudes. Muita gente, hoje em dia, não tem a menor noção do significado dessa palavra, num país onde universitários por pouco não lincham colegas, num país onde políticos fazem de cargos públicos, trampolins para conseguirem todas as benesses, para legislarem em causa própria, num país onde, sem mais nem menos, somem com uma parte do hino nacional. Não é o caso da dona Ana Arcanjo. Ela sabe exatamente o significado da palavra civismo.
Explico-me: na semana passada, Fabiana Ribeiro Reis, uma querida amiga do estado do Rio de Janeiro, me indicou um filminho (abaixo). Nele, dona Ana Arcanjo reina soberana. Nele, dona Ana Arcanjo, orvalhada pelos seus cabelos brancos, nos dá uma grande lição. É fantástico encontrar com pessoas que têm o que nos falar, o que nos ensinar. Dona Ana é uma dessas pessoas.
"Tá faltando civismo!", exclama ela. E muita vergonha na cara, muita vergonha na cara!, completo eu.
Eia sus, dona Ana! Eia sus!
Adelidia Chiarelli