domingo, 2 de junho de 2013
Cidades nascem abraçadas a seus rios, mas lhes viram as costas no crescimento
Via Ciência e Cultura
Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência
Cienc. Cult. vol.65 no.2 São Paulo Apr./June 2013
Por Leonor Assad
O Brasil tem a maior rede hidrográfica e possui a maior reserva de água doce do planeta. Se levarmos em conta a quantidade de água de territórios estrangeiros que ingressa no país pelas bacias amazônica, do Uruguai e do Paraguai, a vazão média de nossos rios é da ordem de 267 mil metros cúbicos por segundo, ou seja, pouco mais de 100 piscinas olímpicas por segundo. É muita água! Que tem um papel de grande importância na vida das pessoas.
Mas o país mantém com seus rios uma relação ambígua: as cidades os abraçam para crescer e se desenvolver, criando importante laço para o desenvolvimento urbano e agrícola, mas os destroem, ao torná-los o principal meio de escoamento de esgoto. Os rios sofrem com a poluição, o assoreamento, o desvio de seus cursos e com a destruição das matas ciliares; e a beleza da paisagem fica obstruída pelo mau cheiro, mudança de coloração, incapacidade de uso original de seus recursos.
Os cursos d'água possuem múltiplos usos: consumo humano , aproveitamento industrial, irrigação, criação animal, pesca, aquicultura e piscicultura, turismo, recreação, geração de energia, lazer e transporte. A arquiteta e paisagista Maria Cecília Barbieri Gorski, escreveu o livro Rios e cidades: ruptura e reconciliação, onde afirma que, em algumas regiões do Brasil, rios e córregos estiveram, e ainda estão, associados ao cotidiano de populações ribeirinhas, fornecendo água para as habitações e para ativação de engenhocas como monjolo e roda d'água. O leito fluvial continua sendo usado para o deslocamento de pessoas e mercadorias, para lavagem de roupas, para atividades extrativistas como a pesca e para a mineração de areia, argila e minerais como o ouro.
Segundo dados do GeoBrasil – Recursos Hídricos, elaborado pela Agência Nacional de Águas, a irrigação na agricultura é responsável pelo maior percentual de água consumida (45%), com destaque para as regiões do Atlântico Sul, do Uruguai, do Paraná, Atlântico Nordeste Oriental e do São Francisco (ver gráfico). Mas existem grandes diferenças regionais nesse uso. Em quantidade consumida, predomina a região hidrográfica do Paraná que se destaca em todos os usos, com exceção da irrigação, na qual aparece em 3º lugar. A região do Atlântico Sudeste apresenta usos relevantes no abastecimento urbano e industrial devido a suas grandes metrópoles. Já nas regiões do Atlântico Nordeste Oriental, do Atlântico Leste e do São Francisco, onde a migração urbana foi menos intensa, a predominância é do uso da água no meio rural.
RIOS QUE ATRAEM CIDADES Gercinair Silvério Gandara, historiadora e professora da Universidade Estadual de Goiás (UEG), analisa as cidades brasileiras de um ponto de vista da beira, ou seja, da perspectiva do rio, do mar, do ribeirão, das estradas, da rodovia, da ferrovia, entre outras. E, se muitas de nossas cidades são de beira, várias cresceram a custa de seus rios. Por exemplo, em todas as capitais brasileiras, incluindo Brasília, rios tiveram papel importante no desenvolvimento urbano, ainda que muitas vezes eles estejam poluídos, canalizados ou com suas características físicas alteradas. Cidades ribeirinhas de médio e pequeno porte, como Penedo em Alagoas, Piracicaba em São Paulo e Blumenau em Santa Catarina, têm nos seus rios um fator de vitalidade e atração turística.
Gercinair considera os rios um espaço social em constante transformação. Segundo ela, muitas cidades que nascem voltadas para os rios acabam virando-lhes as costas: "isto resulta das próprias dinâmicas históricas das cidades no cruzamento dos caminhos fluviais e terrestres; assim, as cidades-rios são chaves para a leitura do mundo e do ambiente".
Com essa ótica, a historiadora estudou o rio Parnaíba, que banha os estados do Maranhão e do Piauí. Com a transferência da capital do Piauí, de Oeiras para Teresina, em 1852, atividades extrativistas e de comercialização e a navegação a vapor foram intensificadas e contribuíram para que o rio Parnaíba assumisse um importante papel de integração comercial. Teresina, que está situada no centro médio do rio Parnaíba, foi projetada e construída para alavancar o crescimento do Piauí e deter a influência que o Maranhão começava a exercer sobre o interior piauiense. Gercinair salienta que, em consequência da mudança da capital, surgiram e ressurgiram vários povoados à beira do rio Parnaíba, que mais tarde se tornaram vilas, cidades, empórios comerciais: "elas foram surgindo marcadas pelo tráfego das mercadorias transportadas pelo rio, durante a segunda metade do século XIX e a primeira metade do século XX".
Outra cidade cuja formação e desenvolvimento são marcados por rios é São Paulo, a sexta maior cidade do mundo. Para o historiador Janes Jorge, da Universidade de São Paulo, é impossível discutir a formação e o desenvolvimento de São Paulo sem considerar o papel dos rios Tietê, Pinheiros, Anhangabaú e Tamanduateí, e como a cidade e seus moradores se relacionaram com eles ao longo do tempo. Os jesuítas, liderados por Anchieta e incentivados pela Coroa portuguesa, fundaram seu Colégio no alto de uma colina, delimitada a oeste pelo vale do riacho Anhangabaú e a leste pelo rio Tamanduateí, afluente da margem esquerda do Tietê. Jorge acrescenta que "a colina era tida como mais propícia à defesa militar, do ponto de vista do europeu, impondo dificuldades de locomoção e defesa face aos atacantes e garantindo visibilidade ampla aos defensores". Mantinha-se, entretanto, a possibilidade de se obter tudo aquilo que os rios ofereciam aos indígenas, completa Jorge.
Em seu livro Tietê, o rio que a cidade perdeu, Jorge aponta que, durante mais de três séculos, São Paulo se desenvolveu mantendo praticamente inalterada a conformação da bacia hidrográfica à qual se amoldava. Até o final do século XIX ocorreram "modestas intervenções nos traçados dos rios, cujas águas já recebiam pequenas cargas de esgotos e resíduos; nas várzeas houve a introdução de animais de criação, plantas domesticadas ou exóticas, corte das matas ciliares ou de cabeceiras; e a pesca e a caça eram habituais".
Nas primeiras décadas do século XX, São Paulo transformava-se em grande cidade, com o setor industrial ganhando cada vez mais espaço. Janes Jorge explica que foi preciso repensar a relação entre a cidade e o seus rios e houve uma intensa disputa social por esse recurso valioso para a vida cotidiana dos moradores e a economia da cidade: "em linhas gerais buscava-se garantir o saneamento, o seu abastecimento de água e energia elétrica e incorporar as várzeas dos rios paulistanos à área urbana, transformando-as em vias expressas, área de lazer ou em espaço negociável no mercado de terras". A navegação, o uso do rio e de suas margens como área de lazer e o combate às enchentes, apesar dos debates, nunca se tornaram prioridades de fato, afirma Jorge. E acrescenta: "em meados do século XX, os rios passaram a meros canais de esgotos, receptáculos de todo tipo de dejetos, com águas poluídas e perigosas, isolados por pistas expressas de automóveis". Os rios da capital paulista, com suas águas, mesmo contaminadas, produziriam a energia elétrica que São Paulo e sua indústria precisavam, mas o cotidiano dos paulistanos se empobreceu brutalmente. CONTINUA!
Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência
Cienc. Cult. vol.65 no.2 São Paulo Apr./June 2013
Por Leonor Assad
O Brasil tem a maior rede hidrográfica e possui a maior reserva de água doce do planeta. Se levarmos em conta a quantidade de água de territórios estrangeiros que ingressa no país pelas bacias amazônica, do Uruguai e do Paraguai, a vazão média de nossos rios é da ordem de 267 mil metros cúbicos por segundo, ou seja, pouco mais de 100 piscinas olímpicas por segundo. É muita água! Que tem um papel de grande importância na vida das pessoas.
Mas o país mantém com seus rios uma relação ambígua: as cidades os abraçam para crescer e se desenvolver, criando importante laço para o desenvolvimento urbano e agrícola, mas os destroem, ao torná-los o principal meio de escoamento de esgoto. Os rios sofrem com a poluição, o assoreamento, o desvio de seus cursos e com a destruição das matas ciliares; e a beleza da paisagem fica obstruída pelo mau cheiro, mudança de coloração, incapacidade de uso original de seus recursos.
Os cursos d'água possuem múltiplos usos: consumo humano , aproveitamento industrial, irrigação, criação animal, pesca, aquicultura e piscicultura, turismo, recreação, geração de energia, lazer e transporte. A arquiteta e paisagista Maria Cecília Barbieri Gorski, escreveu o livro Rios e cidades: ruptura e reconciliação, onde afirma que, em algumas regiões do Brasil, rios e córregos estiveram, e ainda estão, associados ao cotidiano de populações ribeirinhas, fornecendo água para as habitações e para ativação de engenhocas como monjolo e roda d'água. O leito fluvial continua sendo usado para o deslocamento de pessoas e mercadorias, para lavagem de roupas, para atividades extrativistas como a pesca e para a mineração de areia, argila e minerais como o ouro.
Segundo dados do GeoBrasil – Recursos Hídricos, elaborado pela Agência Nacional de Águas, a irrigação na agricultura é responsável pelo maior percentual de água consumida (45%), com destaque para as regiões do Atlântico Sul, do Uruguai, do Paraná, Atlântico Nordeste Oriental e do São Francisco (ver gráfico). Mas existem grandes diferenças regionais nesse uso. Em quantidade consumida, predomina a região hidrográfica do Paraná que se destaca em todos os usos, com exceção da irrigação, na qual aparece em 3º lugar. A região do Atlântico Sudeste apresenta usos relevantes no abastecimento urbano e industrial devido a suas grandes metrópoles. Já nas regiões do Atlântico Nordeste Oriental, do Atlântico Leste e do São Francisco, onde a migração urbana foi menos intensa, a predominância é do uso da água no meio rural.
RIOS QUE ATRAEM CIDADES Gercinair Silvério Gandara, historiadora e professora da Universidade Estadual de Goiás (UEG), analisa as cidades brasileiras de um ponto de vista da beira, ou seja, da perspectiva do rio, do mar, do ribeirão, das estradas, da rodovia, da ferrovia, entre outras. E, se muitas de nossas cidades são de beira, várias cresceram a custa de seus rios. Por exemplo, em todas as capitais brasileiras, incluindo Brasília, rios tiveram papel importante no desenvolvimento urbano, ainda que muitas vezes eles estejam poluídos, canalizados ou com suas características físicas alteradas. Cidades ribeirinhas de médio e pequeno porte, como Penedo em Alagoas, Piracicaba em São Paulo e Blumenau em Santa Catarina, têm nos seus rios um fator de vitalidade e atração turística.
Gercinair considera os rios um espaço social em constante transformação. Segundo ela, muitas cidades que nascem voltadas para os rios acabam virando-lhes as costas: "isto resulta das próprias dinâmicas históricas das cidades no cruzamento dos caminhos fluviais e terrestres; assim, as cidades-rios são chaves para a leitura do mundo e do ambiente".
Com essa ótica, a historiadora estudou o rio Parnaíba, que banha os estados do Maranhão e do Piauí. Com a transferência da capital do Piauí, de Oeiras para Teresina, em 1852, atividades extrativistas e de comercialização e a navegação a vapor foram intensificadas e contribuíram para que o rio Parnaíba assumisse um importante papel de integração comercial. Teresina, que está situada no centro médio do rio Parnaíba, foi projetada e construída para alavancar o crescimento do Piauí e deter a influência que o Maranhão começava a exercer sobre o interior piauiense. Gercinair salienta que, em consequência da mudança da capital, surgiram e ressurgiram vários povoados à beira do rio Parnaíba, que mais tarde se tornaram vilas, cidades, empórios comerciais: "elas foram surgindo marcadas pelo tráfego das mercadorias transportadas pelo rio, durante a segunda metade do século XIX e a primeira metade do século XX".
Outra cidade cuja formação e desenvolvimento são marcados por rios é São Paulo, a sexta maior cidade do mundo. Para o historiador Janes Jorge, da Universidade de São Paulo, é impossível discutir a formação e o desenvolvimento de São Paulo sem considerar o papel dos rios Tietê, Pinheiros, Anhangabaú e Tamanduateí, e como a cidade e seus moradores se relacionaram com eles ao longo do tempo. Os jesuítas, liderados por Anchieta e incentivados pela Coroa portuguesa, fundaram seu Colégio no alto de uma colina, delimitada a oeste pelo vale do riacho Anhangabaú e a leste pelo rio Tamanduateí, afluente da margem esquerda do Tietê. Jorge acrescenta que "a colina era tida como mais propícia à defesa militar, do ponto de vista do europeu, impondo dificuldades de locomoção e defesa face aos atacantes e garantindo visibilidade ampla aos defensores". Mantinha-se, entretanto, a possibilidade de se obter tudo aquilo que os rios ofereciam aos indígenas, completa Jorge.
Em seu livro Tietê, o rio que a cidade perdeu, Jorge aponta que, durante mais de três séculos, São Paulo se desenvolveu mantendo praticamente inalterada a conformação da bacia hidrográfica à qual se amoldava. Até o final do século XIX ocorreram "modestas intervenções nos traçados dos rios, cujas águas já recebiam pequenas cargas de esgotos e resíduos; nas várzeas houve a introdução de animais de criação, plantas domesticadas ou exóticas, corte das matas ciliares ou de cabeceiras; e a pesca e a caça eram habituais".
Nas primeiras décadas do século XX, São Paulo transformava-se em grande cidade, com o setor industrial ganhando cada vez mais espaço. Janes Jorge explica que foi preciso repensar a relação entre a cidade e o seus rios e houve uma intensa disputa social por esse recurso valioso para a vida cotidiana dos moradores e a economia da cidade: "em linhas gerais buscava-se garantir o saneamento, o seu abastecimento de água e energia elétrica e incorporar as várzeas dos rios paulistanos à área urbana, transformando-as em vias expressas, área de lazer ou em espaço negociável no mercado de terras". A navegação, o uso do rio e de suas margens como área de lazer e o combate às enchentes, apesar dos debates, nunca se tornaram prioridades de fato, afirma Jorge. E acrescenta: "em meados do século XX, os rios passaram a meros canais de esgotos, receptáculos de todo tipo de dejetos, com águas poluídas e perigosas, isolados por pistas expressas de automóveis". Os rios da capital paulista, com suas águas, mesmo contaminadas, produziriam a energia elétrica que São Paulo e sua indústria precisavam, mas o cotidiano dos paulistanos se empobreceu brutalmente. CONTINUA!