JC e-mail 4863, de 27 de novembro de 2013
FMC 2013: 'Precisamos deixar as crianças sujarem as mãos com ciência'
Primeira ocupante do cargo de conselheira científica chefe do presidente da Comissão Europeia, a bióloga Anne Glover concedeu entrevista à Notícias do ABC
A bióloga Anne Glover, que em 2012 assumiu a importante missão de ser a primeira pessoa a ocupar o cargo de conselheira científica chefe do presidente da Comissão Europeia, defende que a ciência deve ser "vivenciada" para se aproximar das pessoas. A escocesa acredita que os cientistas jovens, ao servirem de modelos, são fundamentais para reavivar em adolescentes o ânimo com os temas científicos, e que uma maior comunicação é essencial para estimulá-los a seguir carreiras como engenharia, química e biologia, que carece de profissionais. Glover, que está no Rio de Janeiro para participar do Fórum Mundial de Ciência, comenta, em entrevista exclusiva para a ABC, os maiores desafios que enfrenta no cenário da ciência, tecnologia e inovação europeu. A cientista, que diz ter "a profissão mais divertida do planeta", defende, ainda, uma cooperação maior entre Brasil e Europa.
- Desde 2012, a senhora é a conselheira científica chefe do presidente da Comissão Europeia, José Manuel Barroso - uma experiência que teve antes na Escócia. Quais são as suas maiores responsabilidades?
Na Escócia, assim como na Comissão Europeia, eu fui a primeira conselheira científica - antes, esse cargo não existia. Assumi essa posição em 2006, quando o governo escocês percebeu que a ciência era muito importante para o país. Como tive que começar do nada, foi um trabalho bastante difícil, mas, na Comissão Europeia, os desafios são ainda maiores. Isso porque, na Escócia, eu persuadia o primeiro ministro em relação às decisões e ele dizia "ok, vamos fazer isso". Já na Comissão Europeia, é preciso conciliar as opiniões de 28 membros. Nosso trabalho inclui usar a ciência como uma das bases para a formulação de políticas, manter um banco de dados atualizado em relação a essas políticas e desenvolver uma rede global de conselheiros científicos. Por enquanto, temos apenas três na Europa - no Reino Unido, na Irlanda e na República Tcheca. Mas outros Estados já estão começando a nomear os seus, e há um movimento para fazer isso em nível global. A vantagem dessa rede é discutir sobre assuntos importantes como mudanças climáticas e segurança alimentar. Os políticos estão percebendo a importância disso.
- Você diz que a enorme diversidade cultural e linguística da União Europeia é a sua maior força, mas também um desafio para o seu trabalho. Que dificuldades essas diferenças trazem para a tomada de decisões sobre políticas de ciência?
Na Europa, nós somos todos amigos, conhecemos uns aos outros, mas somos muito diferentes. Por exemplo: alguns países, por razões históricas ou culturais, podem ser contra algum tipo de tecnologia. Eu preciso estar consciente dessa situação e lidar com isso. Mas a vida nao seria divertida sem esses desafios! A melhor forma de superar essas diferenças é sempre comunicar as pessoas sobre a ciência.
- A pesquisa European Union Report 2009 mostrou que, entre os jovens , a procura por carreiras científicas diminuiu drasticamente, enquanto aumentou em países pobres. Como a senhora vê esse fenômeno?
Acredito que os europeus estão muito "confortáveis". Em países pobres, as pessoas veem a ciência como oportunidade. Em países ricos, elas não têm as mesmas dificuldades e perderam a visão do que é importante. No entanto, as pessoas mais espertas pensam em carreiras científicas ou, pelo menos, entendem o método científico. É importante pensar em formas de engajar as pessoas na ciência. Por exemplo: na Europa, assim como no Brasil, nao há engenheiros suficientes, talvez porque as pessoas não entendam o que engenheiros fazem. Muitos pensam "eu não quero usar um macacão e sujar minhas mãos". Engenharia é um link entre conhecimento e economia, uma profissão de valor e empolgante. Pouca gente sabe que no Reino Unido, por exemplo, engenheiros ganham mais que advogados. Mas as pessoas sabem o que advogados ou médicos fazem e não tem noção do que faz um físico, químico, biólogo - imaginam que são pessoas de jaleco branco, sem amigos, que só ficam no laboratório. Por isso é preciso mais comunicação. Eu costumo pensar: "Os cientistas são os seres mais divertidos do planeta, por que você não quer fazer parte disso?".
- Justamente, em uma entrevista publicada pelo "Herald Scotland ", a senhora afirma que "não é preciso tornar a ciência divertida, porque ele já é". Como podemos torná-la mais acessível , especialmente para os jovens?
Uma forma de atrair as pessoas são os centros de ciência, museus, galerias, exposições científicas. Nesses ambientes, elas podem experimentar a ciência, que é uma coisa viva. A química, por exemplo, é feita de reações, explosões, e precisamos vivenciar isso, deixar as crianças sujarem as mãos com ciência. Esses centros são importantes, mas mesmo nas universidades e laboratórios é essencial criar um vínculo com escolas locais. O papel de jovens cientistas também é fundamental. Isso porque, crianças de até 12, 13 anos, se animam com ciência, mas na puberdade elas começam a achar tudo uma besteira. Então precisamos criar modelos fortes a partir dos cientistas jovens, para atraí-las.
- A senhora defende a importância do papel das mulheres na ciência e tecnologia. Temos visto algumas iniciativas que estimulam a participação das mulheres nesse campo , como o prêmio L'Oréal -Unesco-ABC "Para Mulheres na Ciência ". Como incentivar uma maior contribuição das mulheres nesse meio?
Aqui, mais uma vez, os modelos são importantes. Se você é uma jovem mulher e vê outra mulher comum, como você, que é uma cientista bem sucedida, você pensa "eu também posso fazer isso". Eu particularmente, sou uma grande defensora de uma maior participação das mulheres na ciência. Elas lidam com problemas de forma diferente e agregam muito valor aos laboratórios. Também se comunicam mais facilmente. Não sou contra os homens - pelo contrário, as parcerias é que são muito boas. Ambientes com homens e mulheres são muito mais ricos. Para ter sucesso, uma sociedade moderna precisa de ciência, tecnologia, engenharia, e para isso tem que ter as melhores mentes, tanto de homens quando de mulheres. Não se pode ignorar 50% da população.
- E como é o seu trabalho como pesquisadora?
Eu pesquiso como nós respondemos ao estresse em nível molecular. Se eu tenho câncer, estou fazendo quimioterapia, que é desenvolvida para matar as células cancerígenas. Mas esse tratamento também estressa as células normais. Nesse estudo, nós pré-condicionamos as células normais para que elas não sejam afetadas pelo estresse. Usamos técnicas para ver quais os genes são ativados quando o organismo é estressado. Minha ciência ainda é muito importante para mim, me impede de ficar louca! Apesar de ter pouco tempo para me dedicar a ela, ainda mantenho o meu laboratório.
- A senhora está no Brasil para participar do Fórum Mundial de Ciência, realizado pela primeira vez fora da Hungria. Qual é a importância deste evento e quais são suas expectativas pessoais?
Estou tendo a possibilidade de encontrar cientistas do mundo todo, pessoas das academias de ciências e outras instituições, é uma grande conferência. Juntar todas essas organizações é muito interessante e pouco habitual, nao há outras oportunidades para isso. E, por ser no Brasil, há muita gente da América do Sul, região em que tenho muito interesse em saber como as coisas funcionam.
- Como o Brasil pode aprender com a experiência da União Europeia em ciência, tecnologia e inovação? Por outro lado, de que forma o Brasil pode inspirar a Europa?
O sistema Lattes é um grande exemplo para a União Europeia. É fantástico os cientistas saberem o que cada um está fazendo, uma maneira sensacional de conectá-los. Precisamos implantar algo parecido na Europa. Já em relação ao Brasil, espero que possamos fortalecer as relações e criar projetos em conjunto, como na construção do Extremely Large Telescope, do Observatório Europeu do Sul (ESO, na sigla em inglês). A astronomia brasileira é muito impressionante, então trazer essa experiência será ótimo.
(Clarice Cudischevitch, especial para Notícias da ABC)