sábado, 29 de agosto de 2015
Rodopiando em Min - Eliane Brum
Eliane Brum
28.08.2015
Morre o fotógrafo que amarrava as pontas da vida em imagens
Lembro-me primeiro de uma noite de inverno. Marcelo Min e eu testemunhávamos, como repórteres, os últimos dias da vida de Ailce de Oliveira Souza, a mulher que nós dois aprendêramos a amar, ao acompanhar o seu morrer por 115 dias. Naquela noite, Ailce parecia ter começado a partir. Ela só abria os olhos para olhar o mundo do qual se despedia e para pedir água. Nós molhávamos os lábios dela e ficávamos olhando o mundo com ela. Nem Min nem eu conseguimos deixá-la naquela noite. Nos enfiamos num quarto vago na enfermaria de cuidados paliativos do hospital, onde seu último inquilino acabara de se ir. Eram duas camas e não havia lençol. Deitamos sobre o plástico e Min, sempre generoso, me deu o único cobertor fino para atravessar uma madrugada gelada. Até ancorarmos no dia seguinte, ele ficou repetindo que não sentia frio, mas tiritava. Naquela noite do inverno de 2008, ficamos ali, no escuro, dois passageiros clandestinos daquela enfermaria entre a vida e a morte. Conversando para costurar a madrugada e a dor com palavras. Min me contou que queria morrer como seu Antônio, um homem que ele tinha fotografado em outro quarto, seu Antônio que o recebia com uns olhos brilhantes, molhados de vida, mais vivo que todos, e de imediato contava uma história. Min foi o primeiro a perceber que seu Antônio acreditava que, enquanto emendasse uma história na outra, estaria vivo. E um dia apenas fechou os olhos para anunciar que sua história tão cheia de “um tudo” havia chegado ao fim.
Continua.
28.08.2015
Morre o fotógrafo que amarrava as pontas da vida em imagens
Lembro-me primeiro de uma noite de inverno. Marcelo Min e eu testemunhávamos, como repórteres, os últimos dias da vida de Ailce de Oliveira Souza, a mulher que nós dois aprendêramos a amar, ao acompanhar o seu morrer por 115 dias. Naquela noite, Ailce parecia ter começado a partir. Ela só abria os olhos para olhar o mundo do qual se despedia e para pedir água. Nós molhávamos os lábios dela e ficávamos olhando o mundo com ela. Nem Min nem eu conseguimos deixá-la naquela noite. Nos enfiamos num quarto vago na enfermaria de cuidados paliativos do hospital, onde seu último inquilino acabara de se ir. Eram duas camas e não havia lençol. Deitamos sobre o plástico e Min, sempre generoso, me deu o único cobertor fino para atravessar uma madrugada gelada. Até ancorarmos no dia seguinte, ele ficou repetindo que não sentia frio, mas tiritava. Naquela noite do inverno de 2008, ficamos ali, no escuro, dois passageiros clandestinos daquela enfermaria entre a vida e a morte. Conversando para costurar a madrugada e a dor com palavras. Min me contou que queria morrer como seu Antônio, um homem que ele tinha fotografado em outro quarto, seu Antônio que o recebia com uns olhos brilhantes, molhados de vida, mais vivo que todos, e de imediato contava uma história. Min foi o primeiro a perceber que seu Antônio acreditava que, enquanto emendasse uma história na outra, estaria vivo. E um dia apenas fechou os olhos para anunciar que sua história tão cheia de “um tudo” havia chegado ao fim.
Continua.