sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

Doutorado em história da ciência? Pense duas vezes


JC e-mail 4874, de 12 de dezembro de 2013
Doutorado em história da ciência? Pense duas vezes


Artigo de Cássio Leite Vieira para o Jornal da Ciência


Pós-graduando, se você pretende fazer um doutorado em história da ciência para seguir carreira acadêmica, pense duas vezes. Meu conselho: não faça.

No Brasil, departamentos de história e filosofia são, em geral, refratários a essa cultura chamada ciência - a regra tem as exceções que a justificam. Em número variável, encontramos, nessas instituições, especialistas em religião, artes, música etc. Porém, raramente, em ciência.

Num mundo ideal, cada departamento (ou faculdade, ou instituto) de física, química, biologia e matemática no país teria um historiador da ciência, cuja função seria, além de fazer pesquisa e publicar, dar aos graduandos e pós-graduandos conhecimento da história da área em que eles vão atuar. Ou seja, prover cultura, por meio de uma formação humanística.

Mas, hoje, as chances de aparecer uma vaga dessas são praticamente nulas - afinal, como convencer um diretor ou conselho técnico-científico de que uma das (em geral, poucas) vagas da instituição deve ser para um historiador da ciência? Nos departamentos de história, a ausência de historiadores da ciência parecer soar como temor ao desconhecido.

Um historiador da química brasileiro costumava dar a seus pós-graduandos a seguinte definição: "Nem é história, nem é ciência. É história da ciência." Um modo de ler essa definição: história da ciência é uma área autônoma do conhecimento.

No entanto, essa autonomia - quando mal interpretada - leva a um sério revés: já escutei historiadores dizendo que a pesquisa em história da ciência deveria ser feita nas instituições de ciência. E ouvi de pesquisadores de exatas e biológicas que o local adequado seriam os departamentos de história. [Em tempo: a departamentalização do conhecimento - nas palavras de uma colega historiadora - cria "situações absurdas como essa"].

Cabe, então, perguntar: por que ter um historiador da ciência naqueles dois tipos de instituição, como é comum no exterior? Dois entre vários motivos: i) é praticamente impossível entender o século 19 e, especialmente, o século 20 sem essa cultura - para o historiador marxista britânico Eric Hobsbawm (1917-2012), a mais importante do século passado; ii) ciência é bem mais do que números, símbolos, fórmulas, experimentos, modelos e teorias e, portanto, só pode ser entendida em sua totalidade, como cultura, quando associada à sua história e à sua filosofia.

Dada a inexistência de concursos, doutores em história da ciência, nos últimos anos, têm adentrado as universidades por meio de vagas voltadas para a pesquisa em ensino de ciências. Isso os obriga a fazer também (ou apenas, em muitos casos) pesquisa numa área para a qual não foram treinados.

Outra agravante: o campo da história da ciência tem que conviver com os que julgam que qualquer um pode se tornar historiador da ciência sem longo preparo prévio e sem ter que entrar em arquivos, buscar cartas, imagens ou documentos, fazer entrevistas, pesquisar jornais e revistas, se atualizar na bibliografia da área etc. Bastaria ler alguns livros. O que o leitor pensaria se um jornalista, decepcionado com a profissão ou improdutivo no trabalho, resolvesse virar 'biólogo molecular'?

A assimetria acima ilustra uma das várias atitudes arrogantes das ciências em relação às humanidades - o leitor encontra artigo que esbarra nessa questão aqui: http://bit.ly/1ba4J8x

Cerca de 60 anos depois da palestra em que o físico e escritor britânico C. P. Snow (1905-1980) apontou a falta de comunicação entre o que ele denominou 'as duas culturas' (ciências e humanidades), continuamos formando gente como se esses conhecimentos fossem obrigatoriamente excludentes. Infelizmente, como regra, nossas pós-graduações em exatas e biológicas continuam a formar 'técnicos com PhD'; e as de humanidades, profissionais sem praticamente conhecimento científico - e que, por vezes, orgulham-se disso.

Enfim, no Brasil, o cenário não é promissor para um jovem doutor em história da ciência. Mas, para aqueles sem pretensões acadêmicas, ansiosos por ampla formação humanística, deixo aqui outro conselho: história da ciência é uma das áreas mais fascinantes do conhecimento, pois, por ser necessariamente multidisciplinar, obriga aquele que a ela se dedica a entender, por meio da pesquisa e análise, uma forma de cultura (ciência) em interação constante com o complexo tecido social, político, econômico e, claro, cultural.

Nos últimos anos, o Brasil tem produzido teses de alta qualidade em história da ciência e publicado artigos em periódicos de prestígio no exterior. Muitos recém-doutores são jovens talentosos que, ao entrar na pós-graduação, tinham como meta seguir uma carreira acadêmica. Infelizmente, para a esmagadora maioria deles, esse objetivo é, por enquanto, improvável. E isso me parece um desperdício, para dizer o mínimo.

Cássio Leite Vieira é jornalista do Instituto Ciência Hoje