quarta-feira, 23 de julho de 2014
Autoridades ainda não sabem o que é Ciência
JC e-mail 4995, de 23 de julho de 2014
Autoridades ainda não sabem o que é Ciência
Artigo de Wanderley de Souza publicado em 15/7 no Monitor Mercantil On Line
Tem sido cada vez mais freqüente encontrarmos posições de setores governamentais exigindo uma participação das universidades e dos institutos de pesquisa na transformação de conhecimento obtido pela Ciência em produtos e processos de uso imediato pela sociedade. Felizmente, esta posição equivocada, e que reflete a falta de conhecimento sobre o papel da universidade e do que é Ciência, não é compartilhada pelos setores mais progressistas da indústria nacional.
Um episódio recente, descrito no último número do Jornal da Ciência, levou-me a escrever este artigo. Em reunião do Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia realizada em 25 de junho último, o representante da SBPC sugeriu, em tom bem humorado, que a presidente trancasse seus ministros em uma sala com pão e água até encontrarem maneiras de aproveitar os conhecimentos disponíveis nas instituições científicas para resolverem problemas existentes no país.
Todos ficaram perplexos com a intervenção do ministro Aloísio Mercadante (atualmente na Casa Civil), que afirmou que "os cientistas dedicam excessivo tempo à produção de papers e descuidam das aplicações de utilidade econômica e social da Ciência. Eles deveriam ser trancados em uma sala a pão e água enquanto não desenvolvessem pesquisas de utilidade".
A afirmação do ministro Mercadante explica os atuais percalços por que passa a atividade científica no país, uma vez que alguém que não possua a menor noção sobre o que se espera de um cientista e de instituições científicas tenha ocupado as posições de ministro de Ciência e Tecnologia e também de Educação, nos últimos anos.
É fundamental que a sociedade brasileira tenha clareza de que a universidade deve ser uma instituição com três preocupações fundamentais. A primeira é a de formar profissionais competentes nas mais diferentes áreas do conhecimento. Estes devem ter a capacidade crítica de incorporar na prática profissional os novos conhecimentos que surgem com velocidade crescente.
A segunda é constituir um centro comprometido com o avanço do conhecimento em todas as áreas e sem nenhum compromisso a priori com qualquer aplicabilidade imediata das pesquisas que realiza. Para tal, é fundamental que haja a liberdade de pesquisa, sem imposições sobre o que deva ser objeto de pesquisa. A experiência em várias áreas já deixou claro que é de experimentos sem nenhuma preocupação prática que surgem idéias e dados que têm permitido o avanço da humanidade.
A terceira é representar um local aberto a todas as correntes de opinião, sem nenhuma interferência de ordem política, econômica ou religiosa. A Ciência e a pesquisa não podem ter compromissos com dogmas e os cientistas devem estar sempre prontos a mudar de posição sobre qualquer tema, à medida que novos argumentos surgem.
Os institutos de pesquisa não universitários também devem gozar de liberdade acadêmica, ainda que devam ter compromissos com temas considerados importantes com a missão estabelecida em seus estatutos. Tanto as universidades como os institutos devem se preocupar sim em publicar os tais papers tão criticados pelo ministro Mercadante. Os papers, que prefiro chamar de artigos científicos, são a maneira pela qual o cientista faz com que seus colegas, em todo o mundo, tomem conhecimento de suas descobertas.
Estes artigos só são publicados em revistas importantes após serem avaliados por seus pares, ou seja, outros colegas que trabalham no mesmo tema e em outras instituições, e que atestam a originalidade da contribuição contida no artigo. Estimular que o cientista não publique é como pedir a um escritor que não escreva livros e direcionar o que deve ou não ser pesquisado mostra o desconhecimento do que seja, de fato, ser um pesquisador.
E quem deve ser responsável por usar os conhecimentos que surgem da atividade científica em aplicações de utilidade econômica e social? Certamente que alguns cientistas também se preocupam, voluntariamente, pela aplicação de suas descobertas exercendo o que conhecemos como Ciência Aplicada. Nos institutos de pesquisa vamos encontrar mais exemplos de engajamento na Ciência Aplicada.
Instituições como a Embrapa e a Fiocruz dão exemplos de criatividade nas áreas de agricultura e saúde, reconhecidas por todos. Não o fariam se não contassem com cientistas de alto valor acadêmico.
Já o último processo da cadeia, onde as novas descobertas se transformam em produtos e processos visíveis para a sociedade, é de responsabilidade dos centros de pesquisa e desenvolvimento das empresas e ocorrem no que é conhecido como "chão da fábrica". Este componente da cadeia ainda é incipiente no Brasil, ainda que a Petrobras, a Embraer e outras mais venham demonstrando que tal é possível.
Nesta área, é fundamental o apoio ao setor industrial na forma de financiamento com juros próximos de zero, subsídios, compra governamental, etc. Felizmente já estamos dando os primeiros passos neste sentido.
Wanderley de Souza é Professor titular da UFRJ, ex-secretário executivo do Ministério de Ciência e Tecnologia.
(Monitor Mercantil online)
http://www.monitormercantil.com.br/index.php?pagina=Noticias&Noticia=155553