09.08.2014
“Sou apenas uma parte da cicatrização de todos”, disse nesta sexta-feira o neto de Estela de Carlotto, presidente das Avós de Maio que há 36 anos buscava seu neto desaparecido durante a ditadura argentina.
A identificação de Ignacio Hurban, ou Guido Montoya de Carlotto, como a família da avó o chama, comoveu a Argentina nesta semana. Hurban é filho de Laura Carlotto, a filha de Estela seqüestrada pela ditadura militar em 1977, grávida de poucos meses.
Colegas de cela de Laura dizem que ela teria sido mantida viva até o parto, teve contato com seu bebê por apenas 5 horas e foi assassinada pouco tempo depois. A família identificou os restos de Laura no ano seguinte, mas nunca desistiu de lutar para encontrar Guido.
Uma das fundadoras das Abuelas de La Plaza de Mayo, Estela de Carlotto celebrou, como se fosse seu neto, a restituição de identidade de 113 netos, antes de encontrar o seu.
A ditadura argentina, particularmente desumana, tratou de desaparecer com mais de 500 crianças, muitas delas adotadas por famílias conscientes da situação.
Não se sabe ainda se é o caso de Hurban, que diz apenas ter sido criado no campo. Essa é parte das dificuldades com as quais se deparam as Avós: o medo dos seqüestrados de que, ao buscarem sua identidade, terminem denunciando seus pais adotivos.
Um pianista de 36 anos, casado, da cidade de Olavarría, um povoado com pouco mais de 100 mil habitantes, Guido Carlotto viveu até esta terça-feira como Ignacio Hurban, um pacato professor de música que chegou a tocar piano em uma apresentação das Avós de Maio.
Um cidadão comum, com um passado extraordinário, Hurban, acanhado ainda pelas descobertas que o soterram, apareceu nesta sexta-feira, quando foi apresentado a uma imprensa voraz por informações.
“O importante é fechar esta ferida que está aberta há tanto tempo”, afirmou Hurban ao lado de uma avó sorridente e coruja, que mal cabia em si.
Não é à toa: a luta das Avós começou em plena ditadura, quando as corajosas senhoras se reuniam em confeitarias de Buenos Aires e simulavam ser plácidas velhinhas em um chá. Visavam unir forças na busca por seus netos. Foram se organizando e buscando ajuda internacional. Com o fim da ditadura, essa luta ganhou o mundo e um aliado improvável, a ciência.
A perseverança das avós e a acuidade da Associação Americana para o Avanço da Ciência, em Washington, e do Blood Center de Nova York permitiram o estabelecimento de um índice que possibilita identificar a descendência. Este método antecedeu ao que hoje conhecemos como identificação por DNA.
Estela recupera o neto e todo o país ganha um pouco de esperança e identidade.
Carlotto comemora com outras avós a identificação do seu neto – Foto: Avos de Maio |
Gabriela G. Antunes é jornalista e nômade. Cresceu no Brasil, mas morou nos Estados Unidos e Espanha antes de se apaixonar por Buenos Aires. Na cidade, trabalhou no jornal Buenos Aires Herald e hoje é uma das editoras da versão em português do jornal Clarín. Escreve aqui todos os sábados.