quinta-feira, 25 de fevereiro de 2016
Pesticidas versus mosquitos, uma guerra perdida
Jean Remy Davée Guimarães
JC-Notícias/SBPC
24.02.2016
Na coluna ‘Planeta em transe’, Jean Remy Guimarães questiona a adoção de larvicidas em água potável contra o ‘Aedes aegypti’ e diz que possível relação entre uso indiscriminado dessas substâncias e microcefalia deve ser analisada
O Brasil já viveu tempos de vergonha e de glória em sua longa luta contra doenças transmitidas por vetores como mosquitos. Em seu auge, a epidemia de febre amarela no Rio de Janeiro, no início do século passado, foi tão devastadora que folhetos e cartazes das principais empresas de navegação entre Europa e América do Sul colocavam como vantagem de seus roteiros para Buenos Aires o fato de não incluírem escala na cidade. Depois de controlar a epidemia na Baixada Santista com intervenções na drenagem e saneamento, entre outras abordagens, Oswaldo Cruz foi convocado a repetir o sucesso no Rio de Janeiro. Como sabemos, teve sucesso ali também, mas à custa de muito mais trabalho, oposição e polêmica. E fez o que fez sem usar pesticidas, que nem existiam na época. Atacou a raiz do problema, os criadouros de vetores e as condições socioambientais que favoreciam a sua proliferação. Bons tempos.
Mais tarde, quando o DDT surgiu como promessa de controle de pragas para sempre, a Superintendência de Controle da Malária (Sucam) realizou uma campanha hercúlea, visitando os casebres mais remotos desta vasta federação, erradicando focos, pulverizando DDT para todo lado, tratando doentes, diagnosticando casos suspeitos. O programa parou de vez no início dos anos 1990, quando se avaliou que a prevalência de malária e outras doenças vetoriais já não justificaria sua continuidade. Enquanto durou, o programa cumpriu seus objetivos e alcançou uma capilaridade que deixaria qualquer igreja roxa de inveja. Bons tempos.
DDT contra pragas urbanas
Como sabemos, não duraram muito. As evidências sobre os efeitos do DDT na saúde dos ecossistemas e dos próprios humanos se acumularam e ele acabou banido – embora continuasse permitido para casos de emergência sanitária. Banido e logo substituído por novas levas de compostos propostos pelas indústrias para cumprir a mesma função. Sucessivamente, o mesmo ciclo do DDT se repete: introdução e promoção do novo florão da tecnologia; uso extensivo; estudos mostram problemas; estudos são contestados; intoxicações se sucedem; culpa-se o usuário; os órgãos reguladores colocam o produto numa categoria mais tóxica; ninguém dá bola; o país vizinho proíbe o uso, mas não a fabricação; depois exporta a produção para a Índia; e, depois de muito sofrimento e papelório, o tal produto é banido. O problema é que, enquanto isso, selecionam-se variedades de pragas cada vez mais resistentes, de forma que os pesticidas vão se tornando cada vez mais tóxicos para dar conta do recado. Não seria um problema se eles fossem de fato terríveis apenas contra os insetos, mas não é o caso.
Quatro moléstias e um vetor
O Brasil dos anos de glória da Sucam e do DDT não era o de hoje. Era mais rural e menos consumista. Era – como sempre foi e segue sendo – o pesadelo de qualquer urbanista. Mas suas cidades não eram o formigueiro de hoje, e o lixo e a água parada raramente eram tema digno de notícia. Nos anos 1980, tudo mudou. Apareceu a dengue, popularizando o Aedes aegypti, seu transmissor. Isso reativou o controle químico e introduziu o fumacê, do qual todos se preveniam fechando as janelas. Desde então, o fumacê e agentes de saúde a pé, de moto ou bicicleta aspergem generosamente locais como valas, ralos, charcos, calhas e pratos de planta na maior parte do País. Gerou-se abundante compra de insumos e equipamentos, geraram-se empregos.
Mas é evidente que algo deu muito errado. Ou nada deu certo. O Aedes se espalhou pelo País, a dengue em seus diversos sorotipos matou e segue matando. Agora, além da dengue e da febre amarela o Aedes transmite também o vírus da zika e chikungunya. Quatro moléstias para um vetor só, tantas décadas e pesticidas depois? Nada mau.
Mas ninguém estranhou o evidente fracasso, e a roda da economia seguiu girando. Além de inseticidas, larvicidas e repelentes, há agora clima e oportunidades de negócio para mosquitos transgênicos, mosquitos esterilizados por radiação ionizante e, claro, vacinas para essas novas ameaças, que terão provavelmente sinal verde no licenciamento em função do clima de comoção e da declaração de emergência sanitária pela Organização Mundial da Saúde (OMS), que dá um empurrãozinho extra. O nosso Ministério da Saúde dá outro, sugerindo que as nossas grávidas não deixem de usar repelente. Se ainda não havia estudo epidemiológico sobre o efeito de repelentes de mosquitos em grávidas humanas (incluindo o Exposis, que de tão forte apaga o texto do próprio rótulo e dissolve borracha), não se preocupe: ele está em curso. Resta saber se alguém vai coletar, interpretar e comunicar os dados obtidos.
Experimento epidemiológico em massa
Mas, acredite se quiser, há outro experimento epidemiológico bem mais radical em curso. Não envolve exposição dérmica e sim, ingestão. Sim, há anos o Ministério da Saúde vem autorizando a aplicação de larvicidas diversos em depósitos de água destinada a consumo humano. Tonéis, barricas, caixas d’água, tudo que as populações de baixa renda e sem saneamento usam para estocar água recebe aplicações regulares de larvicidas visando controlar a proliferação de mosquitos, desde que se enquadre na categoria “depósito que não pode ser removido”. Previsivelmente, a arrojada prática é mais frequente no semiárido, isto é, no Nordeste. Mas também é prática corrente no Rio Grande do Sul, como ficamos sabendo quando o governador do estado resolveu há poucos dias suspender a aplicação de larvicidas até nova ordem.
Não sei o que você acha, mas fiquei pasmo com a notícia, e olha que já vi de tudo nessa vida. Larvicidas em água de beber. Há décadas. Aprovados, recomendados e aplicados por autoridades sanitárias brasileiras, como a Agência Nacional de Vigilância Sanitária, e, como a OMS. Por tempo suficiente para que o vetor ficasse imune a uns, forçando a mudança para outros. Se os dados desse mega experimento forem adequadamente coletados, interpretados e comunicados, será uma grande contribuição para o avanço da toxicologia e epidemiologia ambiental de pesticidas em vírus, larvas e humanos. Mas, não sei por que, tenho a sensação de que não verei essa publicação tão cedo.
Me pergunto também se simples telas de mosquiteiro fixadas com elástico não surtiriam melhor efeito que os larvicidas, sem exigir visitas repetidas, sem acumular água como uma tampa improvisada, sem jogar roleta-russa com a saúde da população ao usar em larga escala um produto pouco conhecido e estudado e sem produzir superlarvas de mosquito resistentes a todos os larvicidas disponíveis no mercado. Por outro lado, é forçoso reconhecer que comprar tela de mosquiteiro e elásticos geraria um fluxo de caixa bem menor, o que pode ser bom ou ruim, dependendo do lado em que você estiver, entendeu? Não me peça para desenhar um esquema. Epa, quem falou em esquema? Não fui eu.
Larvicidas e microcefalia?
Como qualquer pesticida, um larvicida é toxicologicamente testado em ratos, e/ou coelhos, cães ou peixes. E se você for um humano? Bem, nenhum comitê de ética em pesquisa aprovaria testes de dose versus efeito de qualquer composto não medicamentoso em populações humanas. Então, toma-se as concentrações mínimas determinadas em testes com animais, divide-se estas por um fator de segurança que varia de 10 a 1.000 e passa-se a considerá-las seguras para consumo humano. E passemos ao próximo produto, porque a fila é longa. OK, resumi um bocado, mas a essência do marco regulatório é essa.
Detalhe: embora ambientes e pessoas estejam sempre expostos a mais de um pesticida de uma vez, estes são testados um por um, nunca em combinação. Portanto, os limites de exposição derivados dos testes toxicológicos usuais são uma aposta. Com algum critério, mas sempre uma aposta. Logo, usar os produtos assim aprovados constitui um experimento. E assim, somos expostos a produtos cujos riscos são essencialmente desconhecidos. Ou bem conhecidos, com a proibição dos produtos em certos países, mas não reconhecidos em outros, como o Brasil, que teima em usar pesticidas já banidos na maioria do planeta há anos. O problema é que água de beber é também água de bebê. E o recente aumento de casos de bebês com microcefalia no Nordeste trouxe novas perguntas e hipóteses a um cenário já complexo e grave.
As assustadoras revelações sobre as singulares práticas de nossas autoridades sanitárias estão na nota técnica divulgada pela Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), cujos grupos técnicos questionam a eficácia da ênfase insistente no controle químico de vetores e se somam a outros pesquisadores céticos em relação ao zika vírus como principal causa dos casos de microcefalia. Entre esses céticos, alguns sugerem os larvicidas como possíveis culpados pelo problema – embora a nota da Abrasco não tenha estabelecido uma relação direta.
Conhecendo-se a ficha toxicológica da maioria dos pesticidas já formulados, não seria surpreendente. Considerando que os casos de microcefalia surgiram em áreas onde larvas, vírus e mulheres, grávidas ou não, estiveram expostos a larvicidas na água de abastecimento por anos, essa hipótese não pode ser descartada sem bons motivos. A rigor, considerando a quantidade de perguntas sem resposta em torno do tema, nenhuma hipótese razoável pode ser descartada. Na falta de estudos, que só poderão ser conclusivos quando forem realizados, a hipótese de que há conexão entre exposição a larvicidas e microcefalia vale tanto quanto a hipótese contrária. No entanto, qualificar de saída a primeira hipótese como boato é uma das formas mais eficientes de impedir que se realizem os estudos que poderiam esclarecer a questão. Afinal, cientistas sérios não perdem tempo investigando boatos, certo? E quando uma hipótese se torna um boato? Quando se repete ad nauseiam em todos os canais de mídia que ela é um, mesmo que não se apresente nenhum dado para comprová-lo.
Passei dos sessenta e devo estar ficando saudosista. Tenho saudades do tempo em que as expressões “saúde pública”, “princípio de precaução” e “conflito de interesses” ainda tinham algum significado e relevância. Ou tudo isto também era só boato?
Jean Remy Davée Guimarães
Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Ciência Hoje
24.02.2016
Na coluna ‘Planeta em transe’, Jean Remy Guimarães questiona a adoção de larvicidas em água potável contra o ‘Aedes aegypti’ e diz que possível relação entre uso indiscriminado dessas substâncias e microcefalia deve ser analisada
O Brasil já viveu tempos de vergonha e de glória em sua longa luta contra doenças transmitidas por vetores como mosquitos. Em seu auge, a epidemia de febre amarela no Rio de Janeiro, no início do século passado, foi tão devastadora que folhetos e cartazes das principais empresas de navegação entre Europa e América do Sul colocavam como vantagem de seus roteiros para Buenos Aires o fato de não incluírem escala na cidade. Depois de controlar a epidemia na Baixada Santista com intervenções na drenagem e saneamento, entre outras abordagens, Oswaldo Cruz foi convocado a repetir o sucesso no Rio de Janeiro. Como sabemos, teve sucesso ali também, mas à custa de muito mais trabalho, oposição e polêmica. E fez o que fez sem usar pesticidas, que nem existiam na época. Atacou a raiz do problema, os criadouros de vetores e as condições socioambientais que favoreciam a sua proliferação. Bons tempos.
Mais tarde, quando o DDT surgiu como promessa de controle de pragas para sempre, a Superintendência de Controle da Malária (Sucam) realizou uma campanha hercúlea, visitando os casebres mais remotos desta vasta federação, erradicando focos, pulverizando DDT para todo lado, tratando doentes, diagnosticando casos suspeitos. O programa parou de vez no início dos anos 1990, quando se avaliou que a prevalência de malária e outras doenças vetoriais já não justificaria sua continuidade. Enquanto durou, o programa cumpriu seus objetivos e alcançou uma capilaridade que deixaria qualquer igreja roxa de inveja. Bons tempos.
DDT contra pragas urbanas
Como sabemos, não duraram muito. As evidências sobre os efeitos do DDT na saúde dos ecossistemas e dos próprios humanos se acumularam e ele acabou banido – embora continuasse permitido para casos de emergência sanitária. Banido e logo substituído por novas levas de compostos propostos pelas indústrias para cumprir a mesma função. Sucessivamente, o mesmo ciclo do DDT se repete: introdução e promoção do novo florão da tecnologia; uso extensivo; estudos mostram problemas; estudos são contestados; intoxicações se sucedem; culpa-se o usuário; os órgãos reguladores colocam o produto numa categoria mais tóxica; ninguém dá bola; o país vizinho proíbe o uso, mas não a fabricação; depois exporta a produção para a Índia; e, depois de muito sofrimento e papelório, o tal produto é banido. O problema é que, enquanto isso, selecionam-se variedades de pragas cada vez mais resistentes, de forma que os pesticidas vão se tornando cada vez mais tóxicos para dar conta do recado. Não seria um problema se eles fossem de fato terríveis apenas contra os insetos, mas não é o caso.
Quatro moléstias e um vetor
O Brasil dos anos de glória da Sucam e do DDT não era o de hoje. Era mais rural e menos consumista. Era – como sempre foi e segue sendo – o pesadelo de qualquer urbanista. Mas suas cidades não eram o formigueiro de hoje, e o lixo e a água parada raramente eram tema digno de notícia. Nos anos 1980, tudo mudou. Apareceu a dengue, popularizando o Aedes aegypti, seu transmissor. Isso reativou o controle químico e introduziu o fumacê, do qual todos se preveniam fechando as janelas. Desde então, o fumacê e agentes de saúde a pé, de moto ou bicicleta aspergem generosamente locais como valas, ralos, charcos, calhas e pratos de planta na maior parte do País. Gerou-se abundante compra de insumos e equipamentos, geraram-se empregos.
Mas é evidente que algo deu muito errado. Ou nada deu certo. O Aedes se espalhou pelo País, a dengue em seus diversos sorotipos matou e segue matando. Agora, além da dengue e da febre amarela o Aedes transmite também o vírus da zika e chikungunya. Quatro moléstias para um vetor só, tantas décadas e pesticidas depois? Nada mau.
Mas ninguém estranhou o evidente fracasso, e a roda da economia seguiu girando. Além de inseticidas, larvicidas e repelentes, há agora clima e oportunidades de negócio para mosquitos transgênicos, mosquitos esterilizados por radiação ionizante e, claro, vacinas para essas novas ameaças, que terão provavelmente sinal verde no licenciamento em função do clima de comoção e da declaração de emergência sanitária pela Organização Mundial da Saúde (OMS), que dá um empurrãozinho extra. O nosso Ministério da Saúde dá outro, sugerindo que as nossas grávidas não deixem de usar repelente. Se ainda não havia estudo epidemiológico sobre o efeito de repelentes de mosquitos em grávidas humanas (incluindo o Exposis, que de tão forte apaga o texto do próprio rótulo e dissolve borracha), não se preocupe: ele está em curso. Resta saber se alguém vai coletar, interpretar e comunicar os dados obtidos.
Experimento epidemiológico em massa
Mas, acredite se quiser, há outro experimento epidemiológico bem mais radical em curso. Não envolve exposição dérmica e sim, ingestão. Sim, há anos o Ministério da Saúde vem autorizando a aplicação de larvicidas diversos em depósitos de água destinada a consumo humano. Tonéis, barricas, caixas d’água, tudo que as populações de baixa renda e sem saneamento usam para estocar água recebe aplicações regulares de larvicidas visando controlar a proliferação de mosquitos, desde que se enquadre na categoria “depósito que não pode ser removido”. Previsivelmente, a arrojada prática é mais frequente no semiárido, isto é, no Nordeste. Mas também é prática corrente no Rio Grande do Sul, como ficamos sabendo quando o governador do estado resolveu há poucos dias suspender a aplicação de larvicidas até nova ordem.
Não sei o que você acha, mas fiquei pasmo com a notícia, e olha que já vi de tudo nessa vida. Larvicidas em água de beber. Há décadas. Aprovados, recomendados e aplicados por autoridades sanitárias brasileiras, como a Agência Nacional de Vigilância Sanitária, e, como a OMS. Por tempo suficiente para que o vetor ficasse imune a uns, forçando a mudança para outros. Se os dados desse mega experimento forem adequadamente coletados, interpretados e comunicados, será uma grande contribuição para o avanço da toxicologia e epidemiologia ambiental de pesticidas em vírus, larvas e humanos. Mas, não sei por que, tenho a sensação de que não verei essa publicação tão cedo.
Me pergunto também se simples telas de mosquiteiro fixadas com elástico não surtiriam melhor efeito que os larvicidas, sem exigir visitas repetidas, sem acumular água como uma tampa improvisada, sem jogar roleta-russa com a saúde da população ao usar em larga escala um produto pouco conhecido e estudado e sem produzir superlarvas de mosquito resistentes a todos os larvicidas disponíveis no mercado. Por outro lado, é forçoso reconhecer que comprar tela de mosquiteiro e elásticos geraria um fluxo de caixa bem menor, o que pode ser bom ou ruim, dependendo do lado em que você estiver, entendeu? Não me peça para desenhar um esquema. Epa, quem falou em esquema? Não fui eu.
Larvicidas e microcefalia?
Como qualquer pesticida, um larvicida é toxicologicamente testado em ratos, e/ou coelhos, cães ou peixes. E se você for um humano? Bem, nenhum comitê de ética em pesquisa aprovaria testes de dose versus efeito de qualquer composto não medicamentoso em populações humanas. Então, toma-se as concentrações mínimas determinadas em testes com animais, divide-se estas por um fator de segurança que varia de 10 a 1.000 e passa-se a considerá-las seguras para consumo humano. E passemos ao próximo produto, porque a fila é longa. OK, resumi um bocado, mas a essência do marco regulatório é essa.
Detalhe: embora ambientes e pessoas estejam sempre expostos a mais de um pesticida de uma vez, estes são testados um por um, nunca em combinação. Portanto, os limites de exposição derivados dos testes toxicológicos usuais são uma aposta. Com algum critério, mas sempre uma aposta. Logo, usar os produtos assim aprovados constitui um experimento. E assim, somos expostos a produtos cujos riscos são essencialmente desconhecidos. Ou bem conhecidos, com a proibição dos produtos em certos países, mas não reconhecidos em outros, como o Brasil, que teima em usar pesticidas já banidos na maioria do planeta há anos. O problema é que água de beber é também água de bebê. E o recente aumento de casos de bebês com microcefalia no Nordeste trouxe novas perguntas e hipóteses a um cenário já complexo e grave.
As assustadoras revelações sobre as singulares práticas de nossas autoridades sanitárias estão na nota técnica divulgada pela Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), cujos grupos técnicos questionam a eficácia da ênfase insistente no controle químico de vetores e se somam a outros pesquisadores céticos em relação ao zika vírus como principal causa dos casos de microcefalia. Entre esses céticos, alguns sugerem os larvicidas como possíveis culpados pelo problema – embora a nota da Abrasco não tenha estabelecido uma relação direta.
Conhecendo-se a ficha toxicológica da maioria dos pesticidas já formulados, não seria surpreendente. Considerando que os casos de microcefalia surgiram em áreas onde larvas, vírus e mulheres, grávidas ou não, estiveram expostos a larvicidas na água de abastecimento por anos, essa hipótese não pode ser descartada sem bons motivos. A rigor, considerando a quantidade de perguntas sem resposta em torno do tema, nenhuma hipótese razoável pode ser descartada. Na falta de estudos, que só poderão ser conclusivos quando forem realizados, a hipótese de que há conexão entre exposição a larvicidas e microcefalia vale tanto quanto a hipótese contrária. No entanto, qualificar de saída a primeira hipótese como boato é uma das formas mais eficientes de impedir que se realizem os estudos que poderiam esclarecer a questão. Afinal, cientistas sérios não perdem tempo investigando boatos, certo? E quando uma hipótese se torna um boato? Quando se repete ad nauseiam em todos os canais de mídia que ela é um, mesmo que não se apresente nenhum dado para comprová-lo.
Passei dos sessenta e devo estar ficando saudosista. Tenho saudades do tempo em que as expressões “saúde pública”, “princípio de precaução” e “conflito de interesses” ainda tinham algum significado e relevância. Ou tudo isto também era só boato?
Jean Remy Davée Guimarães
Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Ciência Hoje