terça-feira, 15 de setembro de 2015
O dia em que a casa foi expulsa de casa - Eliane Brum
El País
Eliane Brum
14.09.2015
A maior liderança popular do Xingu foi arrancada do seu lugar pela hidrelétrica de Belo Monte, a obra mais brutal –e ainda impune– da redemocratização do Brasil
Antonia Melo foi encurralada. Por seis meses o tempo da sua vida esteve marcado pelo som das máquinas botando abaixo a vizinhança da Sete de Setembro, o nome da rua só mais uma ironia. Ela estava ali, sitiada, testemunhando o mundo que ajudou a construir ser violado e convertido num cenário de Faixa de Gaza. Ela, seus filhos, seus netos. E o barulho da destruição avançando, cercando, soterrando também as conversas, fincando seus braços robóticos nas palavras, matando frases inteiras. Um dia chegou em casa e descobriu os escombros do muro dos fundos, derrubado junto com um pedaço da floresta que tinha como quintal. Num calor que pode beirar os 40 graus, já não havia energia elétrica suficiente para ligar a geladeira. Antonia foi sendo asfixiada aos poucos, menos ar a cada dia. Mas ainda assim o povo banido das ilhas da Volta Grande do Xingu, dos baixões de Altamira, continuava entrando pelo seu portão sempre aberto, desviando das crateras, saltando sobre os destroços com as havaianas que parecem ter nascido já gastas naqueles pés. “Dona Antonia, dona Antonia, como tiram da gente uma casa?”. Essas milhares de famílias cuspidas de seus lares pela hidrelétrica de Belo Monte fizeram de Antonia Melo o seu endereço. Lá, até o fim, encontravam uma cadeira, um copo de água entre árvores de sombra, e os ouvidos de Antonia, um par de orelhas que ela fez braços e abraço ao escutar os que ninguém mais escutava. Sem rumo, confinados em bairros longe de tudo que conheciam, em residências todas iguais, feitas para não durar, a maioria sem pouso algum, arrancados pela raiz e jogados fora, esses homens, mulheres e crianças esculpidos pelo sol amazônico tinham em Antonia Melo a sua casa. A maior liderança popular viva do Xingu tornara-se o único ponto de reconhecimento num mapa rasgado por uma guerra talvez pior, porque não nomeada. Na sexta-feira, 11 de Setembro de 2015, a casa foi expulsa de casa.
Continua.
Eliane Brum
14.09.2015
A maior liderança popular do Xingu foi arrancada do seu lugar pela hidrelétrica de Belo Monte, a obra mais brutal –e ainda impune– da redemocratização do Brasil
Antonia Melo foi encurralada. Por seis meses o tempo da sua vida esteve marcado pelo som das máquinas botando abaixo a vizinhança da Sete de Setembro, o nome da rua só mais uma ironia. Ela estava ali, sitiada, testemunhando o mundo que ajudou a construir ser violado e convertido num cenário de Faixa de Gaza. Ela, seus filhos, seus netos. E o barulho da destruição avançando, cercando, soterrando também as conversas, fincando seus braços robóticos nas palavras, matando frases inteiras. Um dia chegou em casa e descobriu os escombros do muro dos fundos, derrubado junto com um pedaço da floresta que tinha como quintal. Num calor que pode beirar os 40 graus, já não havia energia elétrica suficiente para ligar a geladeira. Antonia foi sendo asfixiada aos poucos, menos ar a cada dia. Mas ainda assim o povo banido das ilhas da Volta Grande do Xingu, dos baixões de Altamira, continuava entrando pelo seu portão sempre aberto, desviando das crateras, saltando sobre os destroços com as havaianas que parecem ter nascido já gastas naqueles pés. “Dona Antonia, dona Antonia, como tiram da gente uma casa?”. Essas milhares de famílias cuspidas de seus lares pela hidrelétrica de Belo Monte fizeram de Antonia Melo o seu endereço. Lá, até o fim, encontravam uma cadeira, um copo de água entre árvores de sombra, e os ouvidos de Antonia, um par de orelhas que ela fez braços e abraço ao escutar os que ninguém mais escutava. Sem rumo, confinados em bairros longe de tudo que conheciam, em residências todas iguais, feitas para não durar, a maioria sem pouso algum, arrancados pela raiz e jogados fora, esses homens, mulheres e crianças esculpidos pelo sol amazônico tinham em Antonia Melo a sua casa. A maior liderança popular viva do Xingu tornara-se o único ponto de reconhecimento num mapa rasgado por uma guerra talvez pior, porque não nomeada. Na sexta-feira, 11 de Setembro de 2015, a casa foi expulsa de casa.
Continua.