quinta-feira, 28 de novembro de 2013

Dois Josés e um Amarildo, por Eliane Brum

Via El País Brasil
Por 
26.11.2013


Em seu gesto e na sua reivindicação, José Genoino e José Dirceu demonstraram não compreender o Brasil dos protestos: desde que as manifestações tomaram as ruas, presos políticos são os comuns


Havia algo de melancólico no braço erguido dos dois Josés, Genoino e Dirceu, ao serem presos por corrupção. E na afirmação: “Sou preso político”. O punho cerrado é o gesto de resistência de uma geração que lutou contra a ditadura, pegou em armas, foi presa, torturada e assumiu o poder na redemocratização do país. É também o gesto que não mais encontra destinatário para além de seus pares e de parte da militância do PT. É, principalmente, o gesto que não ecoa na juventude que se tornou protagonista dos protestos que mudaram o país. No Brasil que reconheceu Amarildo, o pedreiro, como mártir da democracia, a evocação vinda de José Genoino e de José Dirceu para ocupar esse lugar não encontra ressonância. Desde as manifestações de junho, os presos políticos são os comuns. Para um partido tão hábil em esgrimir simbologias, não compreender o Brasil forjado no ano que não terminou é uma tragédia talvez maior do que a prisão por corrupção de duas de suas estrelas históricas.

Mártir político é Amarildo de Souza. Favelado, negro, analfabeto, 43 anos, o ajudante de pedreiro conhecido como “boi” pela sua capacidade de carregar sacas de cimento desapareceu em 14 de julho ao ser levado a uma UPP (Unidade de Polícia Pacificadora) da Rocinha, no Rio de Janeiro. Amarildo, o homem comum vítima da política de criminalizar, torturar e executar os pobres. Uma política que atravessa a história do Brasil, persiste na redemocratização e se manteve nos governos de Fernando Henrique Cardoso, Lula e Dilma. Não era o primeiro a desaparecer depois de entrar num posto policial, não foi o último. Mas, pela primeira vez, um homem comum, carregando em si todas as marcas da abissal desigualdade do Brasil, foi reconhecido como um desaparecido político da democracia, lugar destinado a ele pela convulsão das ruas. Esta pode ter sido a maior transformação colocada em curso pelos protestos.

Preso político é Rafael Braga Vieira, 26 anos, catador de latas, morador de rua, negro. Ele foi preso em 20 de junho, durante uma manifestação na Avenida Presidente Vargas, no Rio. Já tinha sido preso por roubo em duas outras ocasiões e cumprido as penas completas. Desta vez, está encarcerado, sem julgamento, há cinco meses no presídio de Japeri. Seu crime: carregar uma garrafa de Pinho Sol e outra de água sanitária. E uma vassoura, mas esta não foi considerada suspeita. Seu caso foi relatado à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA) e ao Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos.
Desaparecido político é Antônio Pereira, 32 anos, auxiliar de serviços gerais, negro. Sumiu em 26 de maio, em Planaltina, no Distrito Federal. Há suspeita do envolvimento de policiais militares no seu desaparecimento. Manifestantes marcharam até o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios para protestar pelo seu sumiço. A Comissão de Direitos Humanos do Senado passou a investigar o caso.
Morto político é Douglas Rodrigues, 17 anos, estudante do terceiro ano do ensino médio e atendente de lanchonete. Levou um tiro no peito de um policial numa tarde de domingo, 27 de outubro, quando estava diante de um bar com o irmão de 13 anos, na Vila Medeiros, em São Paulo. Só teve tempo de dizer uma frase, que se transformou num símbolo contra o genocídio de gerações de jovens negros e pobres das periferias do Brasil. Douglas fez sua última pergunta, um conjunto de vogais e consoantes onde cabia uma vida inteira, antes de cair morto: “Por que o senhor atirou em mim?”. Em protesto pela sua morte a população incendiou ônibus, carros e caminhões e depredou agências bancárias. CONTINUA!