sábado, 13 de março de 2010

Glauco e a arte da anarquia

Via Folha Online - Por Luiz Caversan - 12.03.2010


Menino, deixa de anarquia, dizia minha velha tia ranzinza quando eu fazia alguma coisa errada, aprontava alguma travessura.

Anarquia, ali, não tinha nada a ver com anarquismo, mas sim com a capacidade sobretudo das crianças ou daqueles que mantêm a alma juvenil de dar uma esculhambada básica para tornar a vida mais leve, aceitável.

Em paulistês, anarquia é isso.

E assim era o Glauco, assim são os personagens do Glauco, em permanente anarquia para rir da vida e de si mesmo.

Difícil pensar em vida leve e aceitável para falar do Glauco agora que ele foi morto a tiros junto com o filho, numa tragédia medonha.

Difícil lembrar o quanto ele era engraçado, o quanto anarquizava seus amigos e colegas de trabalho, entre os quais me inclui durante muitos anos, com todo o orgulho do mundo.

Talvez fosse o caso de deixar as histórias engraçadas para outro dia, mas vou assumir o risco da heresia, porque o que rola é admiração, respeito e desde já saudades.

Na Folha, onde vivi em tempo integral 21 anos, o Glauco era, ele mesmo, um personagem.

No tempo em que os desenhos de cartunistas e chargistas eram feitos na base do papel e caneta, virava e mexia lá estava aquele cara magrelo com um envelope pardo na mão, entrando meio que furtivamente pelos corredores do quarto andar da Alameda Barão de Limeira, 425, sede da Folha.

Sempre, sempre e sempre tinha uma piadinha, um sarrinho para tirar, e eu, entre outros, costumava ser uma de suas vítimas, assim como o editor de arte Jair de Oliveira (vítima preferencial), o desenhista Emílio Damiani, o Carlos Alberto Faraó, também editor, o Orlando, entre tantos outros.

O humor era sua arma sobretudo quanto ele estava atrasado com seu trabalho --e ele sempre estava atrasado com seja lá o que tivesse que fazer para o jornal.

Numa ocasião, ele tinha que produzir uma charge para a editoria de política e não aparecia. Desesperado, o editor foi ao secretário de redação, Caio Túlio Costa, dizendo que o Glauco não entregara seu trabalho e que não havia o que colocar no lugar. Depois de muitas ligações, Caio conseguiu localizar o artista ao telefone. Diálogo que rolou, logo depois reproduzido pelo Caio:

- Glauco, cadê a charge?

- Não fiz.

- Como não fez? Venha para cá e traga imediatamente o desenho.

- Não vou!

- Como não vem, vem sim! (gritando)

- E se eu não for?

- Se não vier será demitido! (gritando mais ainda)

- Ah, é?

- É, sim!

- Então eu vou... Continua