sexta-feira, 19 de março de 2010

Porque você está deprimido?

Via Contemporânea - Por Carla Rodrigues

Porque você está deprimido?, pergunta a reportagem de capa da edição de 1 de março da revista New Yorker. O extenso artigo traz um debate que não é novo – o que define a depressão como uma doença, o excesso de medicalização do que pode ser uma simples tristeza e em que condições a indústria farmacêutica tem conseguido aprovar um número cada vez maior de drogas. O que serve de gancho para o trabalho de Louis Menand é o lançamento de dois novos livros nos EUA: “Manufacturing depression”, de Gary Greenberg, e “The emperor’s new drugs”, de Irving Kirsch.

Os dois livros chegam ao mercado editorial norte-americano no rastro de uma estatística impressionante: segundo o Instituto Nacional de Saúde Mental, a cada ano 14 milhões de pessoas são diagnosticadas como deprimidas, e outros três milhões estariam com uma pequena depressão, cujos sintomas não durariam mais de dois anos. Além da depressão, os transtornos de ansiedade ainda acometeriam 18,7% dos norte-americanos. Esses números, segundo o livro do psicólogo Gary Greenberg, não correspondem a pessoas doentes, mas a pessoas que teriam uma resposta “saudável a um mundo doente”.

Nessa linha de crítica, trata-se de pensar na medicalização do que um dia já foi chamado de melancolia e na medicalização da tristeza como um dos mais graves efeitos do que há de pior no capitalismo: a indústria farmacêutica lucrando para vender pílulas que fazem com que as pessoas sorriam diante de um tipo de vida sobre a qual elas deveriam sentir-se mal. A indústria se sustentaria no discurso de que a infelicidade é um problema químico, como falta de serotonina, e não existencial, e pode ser corrigido com os remédios certos.

O artigo da New Yorker recupera também outra questão: as mudanças no Manual de Doenças Mentais (DSM, sigla em inglês), que estaria por trás da ampliação dos diagnósticos de depressão. Assim, os números são altos não porque haja mais deprimidos, mas porque há mais diagnósticos de depressão, dados por médicos que consideram como depressão uma gama cada vez maior de sintomas. Mas a segunda – e polêmica – edição dessa manual é de 1968, e de lá para cá tem havido, ano após ano, um aumento do número de pessoas que passam da condição de tristes a deprimidos.

O fato é que a indústria farmacêutica tem investido cada vez mais pesado na divulgação de suas novas descobertas, num lobby poderoso e bem sucedido. A revista cita como exemplos a doação de recursos para hospitais, a promoção de congressos em lugares exóticos (despesas pagas, naturalmente). No que a New Yorker chama de “era da ansiedade”, entre os anos 1968 e 1981, o tranquilizante valium foi remédio mais prescrito no mundo ocidental. Engana-se quem pensa nesse cenário como sendo exclusivamente internacional. No Brasil, o remédio mais vendido nas farmácias é o ansiolítico rivotril.

Em dezembro de 2003, depois de ouvi-lo falar uma conferência, fiz uma entrevista com o psicanalista Benilton Bezerra Jr. sobre o aumento do diagnóstico da depressão. Como a reportagem da New Yorker, cuja pergunta principal é até que ponto a depressão está superdimensionada, a entrevista continua atual, e eu reproduzo abaixo:

A busca da eficiência já invadiu o trabalho, a relação afetiva, a relação com o corpo, a alimentação, e a atividade sexual. É nessa idéia de que há uma perfeição ao alcance de todos – e de que há algo errado com os que não chegam lá –, que está uma das explicações para a endemia de depressão que contamina a sociedade nos tempos atuais. A outra razão é a crescente medicalização do cotidiano, como conta, nessa entrevista, o psicanalista e professor do Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva do Instituto de Medicina Social da Uerj, Benilton Bezerra Jr.:

A depressão está na moda?

- A depressão hoje é o diagnóstico psiquiátrico mais realizado em todo o mundo. Os antidepressivos disputam os primeiros lugares entre os remédios mais vendidos. Há uma proliferação do uso da palavra depressão para explicar estados de alma, como tristeza, tédio ou desânimo. Esse processo de disseminação é complexo, multifacetado, com vários vetores que se articulam. Começa na década de 50, com o surgimento da indústria farmacêutica, passa pela transformação nos critérios do diagnóstico, nos anos 70, e chega na atual e crescente medicalização da vida cotidiana. Sono, comida, sexo, corpo, tudo está medicalizado. Há aumento da importância dos discursos científicos no dia-a-dia. Como todos os outros valores desapareceram, a eficácia se transformou no valor mais fundamental, e a ciência está ocupando esse lugar de principal referência. Ao lado do mercado, a outra grande agência totalizante, forma-se um movimento tentacular que dá a impressão de que depressão está na moda.

Por que o termo médico “depressão” substituiu palavras como tédio e tristeza?

- A palavra depressão tem sido utilizada de forma abusiva, porque o termo extrapolou os limites do jargão técnico e caiu no uso comum. O crescente uso de antidepressivos vem junto com a difusão desse vocabulário. Vive-se numa cultura em que a tolerância com qualquer estado de fracasso e frustração é cada vez menor. A tristeza vem sendo compreendida como desvio de performance, e por isso está virando depressão. O tempo de luto pela perda de um ente querido está cada vez mais reduzido pelo recurso rápido do medicamento que pode apressar a “recuperação”.

O que está acontecendo na sociedade para que a depressão seja uma espécie de endemia?

- Pelas exigências que faz ao indivíduo, a sociedade produz um caminho para o sofrimento que pode levar à depressão. No século 19, por exemplo, as condições eram propícias à histeria, que era a expressão da revolta do desejo, contido pelos mecanismos de repressão. A depressão é um sintoma que evidencia algo fundamental da cultura, que é a busca imperativa da felicidade, da alegria, como um estado necessário ao reconhecimento do sujeito nos laços sociais em que ele está inserido. A exigência de perfomance, otimizada em todos os níveis da vida, não faz as pessoas ficarem mais felizes. Ao contrário, faz com que fiquem mais expostas ao fato de que não são tão felizes quanto deveriam ser. Vivemos cada vez menos constrangidos por regras coercitivas, somos cada vez mais livres para gozar do jeito que nos parecer adequado. Hoje, acredita-se ser possível moldar a sua existência conforme o seu desejo. A liberdade carrega esses dois grandes paradoxos. O primeiro é que somos obrigados a ser livres, o outro é que sabe-se muito pouco o que fazer com a liberdade. Busca-se um discurso competente porque é preciso saber o que fazer com toda essa autonomia.

A ineficiência, ou insucesso, tem sido sentida pelo sujeito como depressão?

- O sujeito está cada vez mais livre, e justamente por isso é cada vez menos capaz de ter referenciais seguros para fazer suas escolhas. A medicalização é uma das faces do que Marilena Chauí já chamou de “discurso competente”. Para todas as áreas da vida se constrói discursos cientificamente embasados, que servem para suprir a deficiência sentida na hora de fazer escolhas. A depressão crescente é a expressão desse descompasso entre uma liberdade cada vez mais ampla, um horizonte de satisfação cada vez mais aberto, e a vida cada vez mais vazia dessa satisfação. As pessoas muito freqüentemente se sentem aquém desse ideal. Ninguém é tão jovem, tão belo, tão saudável nem tão feliz quanto os modelos idealizados querem nos fazer crer possível.

O que há é uma grande mudança cultural e de comportamento?

- Um dos tentáculos dessa maior disseminação da depressão na sociedade é a construção de novas regras de subjetivação. Na sociedade moderna que Freud estudou, as regras de funcionamento produziram o homem psicológico, um indivíduo com mundo interior, cuja essência era localizada na interioridade da sua experiência. Foi na análise desse tipo de indivíduo que a psicanálise se constituiu. Mas há uma transformação aí também. Hoje em dia, há um declínio da importância da interioridade em prol de uma progressiva importância do plano da exterioridade, das sensações. Mudou a maneira como as pessoas se constroem frente a si próprias e aos outros, e com isso mudou também a forma se vivencia o sofrimento. No homem neurótico moderno, havia um conflito interno entre desejos e interdições, um enigma que clamava por uma interpretação. Toda essa maneira de pensar o sofrimento vem cedendo espaço a uma outra forma de sofrer, que não é mais uma dilaceração interior, mas um sentimento de insuficiência, de ineficiência, de incapacidade de atender expectativas externas que são impostas. A psicanálise ainda se preocupa com o sentido da existência. Cada vez mais o que se procura é a recuperação da performance, a idéia de que se alguém está deficiente, pode ficar eficiente.

A indústria farmacêutica teve um papel importante nesse processo de popularização do diagnóstico da depressão?

- Os primeiros remédios para psicóticos surgiram depois da Segunda Guerra Mundial e atingiam pequena parcela da população, apenas os internos nos hospitais. Até o final dos anos 60, o sistema de classificação das doenças na psiquiatria era fortemente influenciado pela psicanálise, de um lado, e pela fenomenologia, de outro. No diagnóstico da depressão havia uma presença muito forte do componente da experiência, do que é a vivência do deprimido. Na década de 70 houve uma virada. Em primeiro lugar na psiquiatria americana, e depois no resto do mundo, passa a haver um afastamento da psicanálise e da fenomenologia como elementos na abordagem diagnóstica. Surge um modelo de classificação que pretende ser meramente descritivo, ateórico, com metodologia simplificada, num movimento estimulado pela OMS (Organização Mundial de Saúde), que visava a criação de um vocabulário comum a todos os psiquiatras. Havia essa justificativa de uma unificação.

Quais foram as conseqüências dessas mudanças?

- É curioso observar que o aumento expressivo e progressivo da depressão acontece junto com o surgimento dos antidepressivos e dessa ampliação da base de diagnóstico. Hoje o diagnóstico de depressão está disponível para a população de uma maneira geral. Nas bancas de jornal existem revistas que publicam listas de sintomas, uma espécie de grade dentro da qual é possível se encaixar. Com os tranqüilizantes e os antidepressivos, a psiquiatria mudou de alvo, deixou de combater o sofrimento para otimizar o bem-estar. Ao invés de tratar da doença, passou a se preocupar com a promoção do bem-estar psicológico. Nos EUA, remédios psiquiátricos e antidepressivos são anunciados diretamente ao consumidor. Aqui, já existe uma pressão indústria farmacêutica no Brasil para vender esses remédios em propagandas na TV. Já naturalizamos os tranqüilizantes, por exemplo, que fazem parte das farmácias de primeiros-socorros de qualquer família, como os analgésicos.


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