domingo, 7 de fevereiro de 2010

Doutores em humilhação

Via Estadão há 191 dias sob censura - Por Debora Diniz* - 07.02.2009


Agredir e insultar um homem a caminho do trabalho é obviamente inaceitável. Pior quando os agressores estudam medicina

Três rapazes agridem um senhor em uma bicicleta com um tapete de carro. A força do impacto leva o homem a se desequilibrar e cair da bicicleta. Excitados pelo impulso sádico, os rapazes teriam gritado "ô, nego". Um grupo de testemunhas denuncia os rapazes à polícia. Eles são presos, o que poderia ser considerado um desfecho justo ao ritual de humilhação racial e de classe. Mas o Centro Universitário Barão de Mauá, [em Ribeirão Preto,] no interior de São Paulo, decidiu também expulsá-los do curso. Eles estudavam medicina.

O que há de tão grave nessa história, além da injúria racial e da agressão física a um homem inocente a caminho do trabalho? O fato de os três rapazes estudarem medicina. Esses são desvios inaceitáveis para qualquer cidadão, mas particularmente inquietantes quando seus autores são futuros médicos. Há um espaço simbólico reservado ao médico em nossa vida social: a ele cabe o conforto, a escuta e o cuidado. Há uma expectativa de acolhimento universal que não distingue cor, idade, sexo ou religião. Um pacto silencioso de confiança é o que nos move ao entrar em um consultório médico: aquela pessoa de branco diante de nós está ali para cuidar de nosso medo da morte.

Dos médicos se espera mais do que o simples cumprimento das regras fundamentais da cidadania: é preciso uma consciência ética sobre o lugar sagrado que socialmente lhes é reservado. Por isso, não pode haver médicos racistas, sexistas ou violentos. As crenças privadas de um médico são simplesmente seus valores sobre o bem viver, o que não lhes confere nenhuma autoridade para julgar ou reprimir moralmente seus pacientes. Um ginecologista, por exemplo, não tem o direito de expressar suas inquietações homofóbicas ao atender uma paciente lésbica, assim como um obstetra de um hospital público, na ausência de colegas que o substituam em um plantão, deve atender uma mulher com autorização para o aborto legal. Esses encontros atualizam a consciência ética que todo médico deve ter ao exercer a medicina.

O homem da bicicleta foi humilhado pelos três rapazes que acreditavam ser divertido agredir ou assustar pessoas a caminho do trabalho. O exercício da humilhação é um instrumento de poder dos fortes e os médicos são indivíduos com poder sobre o corpo vulnerável de um paciente. Mesmo que não estivessem ainda no exercício da medicina, os rapazes testavam os limites das vantagens conferidas pela desigualdade de classe e de raça que contornam nossa vida social. Se um dia vierem a ser médicos e ainda distantes da consciência ética sobre a dor do outro, eles terão outros homens da bicicleta como pacientes e diante deles expressarão semelhante desprezo. Certamente, não mais os agrediriam com um tapete nas costas, mas com a indiferença pelo sofrimento. Continua


*Antropóloga, professora da Universidade de Brasília e pesquisadora da Anis: Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero


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