quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Números em revisão

Pesquisa Fapesp Online
Por Ricardo Zorzetto
Edição Impressa 192 - Fevereiro de 2012


© Leo Ramos

Na tarde da quarta-feira 11 de janeiro, os pesquisadores Frederico Casarsa de Azevedo e Carlos Humberto Moraes executavam uma tarefa pouco comum para neurocientistas. Cobriam uma estante de alvenaria com cartolina branca, para esconder a janela ao fundo, limpavam uma mesa de granito e removiam recipientes de vidro, pipetas e reagentes para uma bancada ao lado, já ocupada por mais vidros, pipetas e reagentes. Eles preparavam o laboratório chefiado pelo médico Roberto Lent na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) para uma sessão de fotos e filmagens. Desejavam registrar em detalhes o funcionamento de uma máquina que começaram a criar sete anos antes e que agora ficou pronta: o fracionador celular automático, que eles pretendem patentear. E o cenário não podia atrapalhar.

O equipamento de nome complicado e quase um metro de altura é uma espécie de triturador tamanho família. Tem motores elétricos que fazem girar a 400 voltas por minuto seis pistões plásticos presos a uma base móvel. Cada pistão funciona mergulhado em um recipiente de vidro contendo amostras de tecido cerebral banhadas em uma solução com detergente. Uma vez acionado o fracionador, seus pistões agitam o líquido incolor criando turbilhões que desfazem as amostras. Duas horas mais tarde, pedaços de tecido cerebral estão dissolvidos em uma mistura leitosa. É o que os pesquisadores apelidaram carinhosamente de suco de cérebro.

A máquina em teste no Laboratório de Neuroplasticidade do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da UFRJ é uma versão turbinada de um fracionador bem mais simples – um tubo e um pistão, ambos de vidro, acionados manualmente – que Lent e a neurocientista Suzana Herculano-
-Houzel usam desde 2004 para desmanchar pedaços de cérebro e contar suas células. Criada por eles próprios, essa técnica vem permitindo conhecer com mais precisão algo que já se imaginava sabido: quantos neurônios existem no cérebro e nos outros órgãos do encéfalo, que ficam abrigados no crânio.

Hoje se sabe, em parte graças ao trabalho do grupo do Rio, que há 86 bilhões de neurônios no cérebro humano, e não os 100 bilhões de que se falava anos atrás. Também se pode afirmar com mais segurança que esses neurônios estão acompanhados de 85 bilhões de células da glia, o outro tipo de célula que compõe o cérebro. Um número bem inferior ao trilhão anunciado antes.

Não são apenas detalhes. Verificar com mais exatidão quantas são e onde estão as células cerebrais é importante para compreender como o cérebro funciona e tentar conhecer as estratégias adotadas pela natureza para construir um órgão tão complexo que, no caso humano, permitiu surgir a mente autoconsciente. Também pode ajudar a identificar características que distinguem um cérebro normal de outro doente.

Mas olhar só para o número de células não é suficiente para desvendar um dos mais intrigantes e fascinantes órgãos do corpo. Hoje a neurociência considera o cérebro bem mais que uma coleção de neurônios, células que se comunicam por meio de eletricidade. Tão ou mais importante quanto o total de neurônios são as conexões efetivas que eles estabelecem entre si, criando redes que processam a informação de forma distribuída, segundo o neuroanatomista italiano Alessandro Vercelli, da Universidade de Turim. “O número, o padrão e a qualidade dessas conexões variam no espaço e no tempo”, conta Martín Cammarota, neurocientista da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, que estuda a formação e a evocação das memórias. “Ter mais neurônios ou menos neurônios não necessariamente torna um indivíduo mais inteligente que outro ou uma espécie mais inteligente que outra”, diz.
Apesar dessas considerações, os resultados que Suzana e Lent colecionam desde 2005 os levaram a questionar algumas ideias tidas como verdades absolutas a respeito da composição e da estrutura do cérebro. No ano passado, Lent considerou que os dados gerados pelo seu grupo e o de Suzana já eram consistentes o suficiente para serem consolidados em uma crítica mais direta. Com três pesquisadores de seu laboratório, ele escreveu a revisão publicada em janeiro no European Journal of Neuroscience na qual afirma que ao menos quatro conceitos básicos da neurociência precisam ser repensados.

O primeiro dogma discutido no artigo é o de que o cérebro humano e o restante do encéfalo têm, juntos, 100 bilhões de neurônios. Conhecido até por quem não é especialista, esse número circula em artigos científicos e livros didáticos há quase 30 anos. O próprio Lent tem um livro, publicado em 2001 e adotado em cursos de graduação, com o título Cem bilhões de neurônios. CONTINUA