Via Estadão
Por Francisco Foot Hardman
25.07.2011
Um jogo de poesia e canto, ainda a ser compreendido
No show do Anhembi, em janeiro, seus olhos de menina tímida brilhavam, mas já não escondiam essa "velhice trágica aos 20 anos". Amy, na melhor e mais sublime linhagem do alto romantismo da cultura pop, trouxe para o século 21 a força do canto e da poesia condensadas numa voz que tinha algo do mágico timbre de deusas como Billie Holiday e Janis Joplin. Mas que era unicamente sua, cada vez que iniciava a performance vocal, no que não será jamais igualável. Única, como um sabá na selva do século, do grave ao agudo sem ajuda, judia de North London mas negra no fundo da alma, no black black black mais chorado desde 2006, que nos avisava do desastre sempre próximo, não só de um amor nomeado definitivo porque fugaz, mas da vida como jogo de azar, enquanto em In my Bed - onde mais a verdade pode eclodir como poesia prosaica senão na cama? - anunciava, antiprofeta da eterna rebeldia jovem, da grande recusa, da negação ao unidimensional: "Tudo está caindo devagar / No rio do não retorno".
Recusa que passa por afastar, nesta hora, os monstros da superexposição sensacionalista, os abutres e hienas vorazes da máquina do shw biz e lembrar, como fez Nelson Mota, neste sábado de luto mundial - confluência não arbitrária mas determinada entre os ataques da extrema direita em Oslo-Utoya e o desaparecimento precoce da maior artista musical deste século ("Não posso ajudar, apenas demonstrar meu destino freudiano / (...) História repete-se a si mesma, ela não termina") -, que Amy Winehouse foi uma excelente letrista, compositora de grande parte das faixas originais entre as pouco menos de 50 músicas que perfazem os dois álbuns duplos que lançou, aos 20 e aos 23 anos. Isso tudo se considerarmos a reedição ampliada do seu primeiro álbum, Frank, em 2008. Mas considerando-se a inclusão de diferentes versões de algumas delas, bem como sua interpretação de alguns clássicos do jazz, soul e reggae, chegamos a cerca de 25 composições próprias editadas em vida. Pouco e muitíssimo, o tempo dirá. E depois virão chegando as canções inéditas, da série que trabalhava para o terceiro CD, prometido e postergado desde 2008. Porque isso é fatal como o desejo de qualquer revolução: todo grande poeta musical deixa o desejo de milhões inconcluso.
Essa enorme poeta da canção, garota-mito seguida em coro e baile por multidões no planeta, está ainda por ser devidamente ouvida e compreendida, até por essa identidade primária, sonoro-corporal, com versos às vezes difíceis em seu lirismo nada óbvio, de vocabulário sofisticado, de alguém formada em cultura literária moderna. Isso, apesar dos esforços sérios de críticos e jornalistas ingleses como Paul Flynn e Chas Newkey-Burden, este último autor de uma biografia, concluída há mais de três anos e padecendo, portanto, dos limites inerentes ao gênero e à cronologia - embora super bem intencionada, traço que, por raro, merece ser dito, no mar de pragas emocionais que saturam amyfobicamente as mídias tradicionais e o espaço web.
Amy, sem nunca precisar ir além de seu território preferido de Camden Town, revisitou o melhor do jazz, do soul, do rock e da Black music e os refundiu com a fúria maior da idade heroica e erótica de seus vinte anos. Inventou a sua história como ícone libertária, judia-negra para além de toda fórmula fechada, distraída e atenta a qualquer mistura: "Doce reunião Jamaica e Espanha". Foi-se, negou-se ao "rehab" e à hipocrisia da violência familiar e da indústria cultural.
Não era preciso tanta doação. Nós já aprendemos antes os segredos tristes e alegres da orfandade. Estávamos ali na Bósnia antes que você tropeçasse na Sérvia. Estávamos ali no marco zero das torres gêmeas. E no Afeganistão e no Iraque. E na Palestina. E em Fukushima. E agora na Noruega. E agora você. Oslo-Utoya-London: nada. Não era preciso tanto. Ouço aqui o grito estendido no arco da promessa. Cuja premissa Amy passou, como casa do vinho que nunca faltará: "My tears dry on their own". Lágrimas secam por si mesmas. Resta sua voz, seu jogo de poesia e canto, jogo de azar para sempre.
FRANCISCO FOOT HARDMAN É PROFESSOR DE TEORIA E HISTÓRIA LITERÁRIA NA UNICAMP
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