Por Marcos Pivetta
Edição Impressa 185 - Julho 2011
Ribeirinhos trocam o peixe com farinha pela ave congelada
Como um visitante do Sul-Sudeste que veio de muito longe para ficar, a comida de supermercado desembarcou em um dos rincões do Brasil mais profundo. Moradores de pequenas comunidades ribeirinhas às margens do rio Solimões, no centro-oeste do estado do Amazonas, estão trocando uma dieta de baixa caloria, historicamente baseada nos peixes locais e na farinha de mandioca, por uma alimentação do tipo fast-food, com direito a frango congelado, bolachas e refrigerantes. Típica dos centros urbanos, essa transição alimentar já havia sido detectada em cidades da Região Norte dos mais variados portes, como a grande Manaus, com seu 1,8 milhão de habitantes, a média Santarém, no Pará, e os pequenos municípios com uns poucos milhares de moradores. Agora a mudança de hábitos à mesa chegou a vilas rurais onde vivem entre 80 e 250 pessoas. São localidades praticamente desconhecidas e só acessíveis por barcos depois de se vencer o balanço das águas por horas, às vezes dias.
A substituição progressiva de itens do antigo cardápio regional nesses pontos remotos da Amazônia foi constatada por um estudo multidisciplinar coor-denado pelo engenheiro agrônomo Luiz Antonio Martinelli, do Centro de Energia Nuclear na Agricultura (Cena) da Universidade de São Paulo (USP) em Piracicaba. Por meio da análise de amostras das unhas de 431 habitantes de oito vilas e quatro cidades do Amazonas, um tipo de material que armazena informações úteis para se reconstituir a dieta de um indivíduo durante os últimos seis meses, o trabalho mostra que os grupos de caboclos do Alto e do Médio Solimões comem alimentos processados com uma frequência cada vez maior. “Eles estão saindo de uma dieta em que produziam localmente a maior parte de seus víveres e entrando em outra em que há predomínio da comida industrializada comprada fora de casa”, diz Martinelli. Para ratificar a história contada pelas unhas, os moradores também foram submetidos a questionários e entrevistas a respeito dos produtos consumidos nas refeições. Os resultados do estudo apareceram num artigo em 31 de maio na versão on-line da revista científica American Journal of Human Biology.
Nessas vilas rurais não há supermercados, às vezes nem sequer uma vendinha. Os alimentos industrializados chegam às localidades por meio dos regatões, barcos que, vindos de Manaus e outras cidades, transportam passageiros no andar de cima e víveres no de baixo. Frequentemente falta energia nas embarcações carregadas de comida. Nessas ocasiões, o liga-desliga dos freezers faz o frango congelado já desembarcar “molinho”, estragado. “Quando isso ocorre, muita gente tem diarreia no dia seguinte”, afirma Martinelli. Continua