domingo, 1 de setembro de 2013
Médicos estrangeiros
Via blog da Cora Rónai
Por Cora Rónai
29.08.2013
Quando os primeiros médicos estrangeiros chegaram ao Brasil, o jornal trouxe a foto de uma jovem espanhola, acompanhada do filhinho. Ela veio trabalhar numa aldeia indígena no Amazonas, e fiquei, confesso, com uma ponta de inveja: se eu fosse jovem e médica, este é um trabalho que teria adorado fazer. Pensei na sorte do garotinho, que tão pequeno terá a chance única de mergulhar numa cultura completamente diferente da sua, e nas ricas lembranças que mãe e filho levarão pela vida afora.
Senti carinho pela médica e por seu menino, como sinto carinho por todos os profissionais que se dispõem a sair da sua zona de conforto para cuidar do nosso planeta e de seus habitantes. Sou grata aos médicos que vieram para o Brasil cuidar dos meus compatriotas desassistidos dos cafundós, embora, como todo mundo, tenha sérias dúvidas a respeito do que poderão fazer sem um mínimo de condições. Se nos hospitais do Rio falta de tudo, de soro a esparadrapo, ninguém precisa de muita imaginação para adivinhar o cenário desolador que os espera.
Há quem reclame que os estrangeiros foram dispensados do Revalida. É uma reclamação justa, ainda que inútil, dadas as circunstâncias. Imagino que o exame sirva para comprovar até que ponto os profissionais estão familiarizados com a medicina atual, mas se há uma coisa que os estrangeiros não vão encontrar nas cidades para onde estão sendo designados é medicina atual: poderão requisitar o mais elementar Raio-X? Ou um hemograma que fique pronto antes de ficar desatualizado? Terão ao menos material de sutura? Antibióticos? Vermífugos?
Quer dizer: serão, na prática, pouco mais que curandeiros, por melhor que tenha sido a sua formação. E, ainda assim, é possível que alguns se saiam muito bem, porque há pessoas que tem o dom de curar com um nada. Um dos grandes livros que li, e que recomendo a todos os angloparlantes, é “The cunning man”, do médico e escritor canadense Robertson Davies, que conta a história de um desses extraordinários curadores.
Há quem reclame também que os médicos não vão conseguir se entender com os seus pacientes por não saberem falar português. Isso é detalhe, e não muito importante. Em que língua a jovem médica espanhola vai se comunicar com os índios? Aliás, em que língua se comunicam os médicos da Funai com tribos recém-descobertas? E os Médicos sem Fronteiras, que vêm de todos os países do mundo e vão para onde são necessários?
Levando o exemplo ao extremo, não custa lembrar que os bons veterinários sempre trataram toda a sorte de bichos com bastante sucesso, sem entender uma só palavra do que miam ou relincham.
O fato é que se há pessoas sem médicos em algum lugar, e se há médicos dispostos a atendê-las, temos mais é que recebê-los de braços abertos, sejam turcos, chilenos ou imenitas. Não chego ao extremo de dizer que é melhor um mau médico do que médico nenhum, porque os maus médicos matam mais do que a natureza sozinha — mas até sob este aspecto os estrangeiros não poderão fazer muita coisa, por absoluta falta de condições e de medicamentos.
o O o
Dito isso, acho escandalosa, ultrajante mesmo, a importação dos médicos cubanos. Não por serem cubanos, é óbvio, nem por duvidar da qualidade da sua formação, mas pela forma enviesada como a questão foi e está sendo conduzida. Nada justifica a proibição de trazerem consigo as suas famílias; nada justifica que o governo cubano receba os seus salários; nada justifica que o Brasil, um país que se quer democrático, compactue com essa mercantilização que transforma pessoas em commodities.
Os defensores do tráfico humano alegam que, consultados, os médicos cubanos não se queixam, e que, para eles, qualquer quantia que venham a receber, por menor que seja, será superior ao que receberiam em Cuba. É um argumento ofensivo, que considera correta uma remuneração vil porque, em outros países, poderia ser pior. Ora, assim se pode justificar qualquer afronta à dignidade humana, a começar pela semi-escravidão dos costureiros bolivianos que trabalham para as grifes de luxo de São Paulo: por incrível que pareça, eles também estariam em pior situação em La Paz.
O artigo 461 da CLT é claro. Ele estipula que trabalhadores com função idêntica, exercendo idênticas tarefas para o mesmo empregador, devem receber salários iguais, sem distinção de sexo, idade ou nacionalidade.
Chama-se a isso justiça. Enquanto os médicos cubanos não tiverem condições de trabalho iguais às dos demais médicos estrangeiros, o Brasil estará compactuando com uma forma de servidão aviltante, que não lança desdouro sobre o servidor, mas cobre de vergonha indelével o empregador.
o O o
Ah, sim: como fica a situação dos brasileiros formados em Cuba que estão aproveitando o programa do governo para voltar ao Brasil? Pouco ouvi falar sobre eles, e menos ainda sobre a sua situação legal. O seu dinheiro também será enviado para Havana? Ficarão dispensados do Revalida mesmo trabalhando em seu (nosso) próprio país?
(O Globo, Segundo Caderno, 29.8.2013)
Por Cora Rónai
29.08.2013
Quando os primeiros médicos estrangeiros chegaram ao Brasil, o jornal trouxe a foto de uma jovem espanhola, acompanhada do filhinho. Ela veio trabalhar numa aldeia indígena no Amazonas, e fiquei, confesso, com uma ponta de inveja: se eu fosse jovem e médica, este é um trabalho que teria adorado fazer. Pensei na sorte do garotinho, que tão pequeno terá a chance única de mergulhar numa cultura completamente diferente da sua, e nas ricas lembranças que mãe e filho levarão pela vida afora.
Senti carinho pela médica e por seu menino, como sinto carinho por todos os profissionais que se dispõem a sair da sua zona de conforto para cuidar do nosso planeta e de seus habitantes. Sou grata aos médicos que vieram para o Brasil cuidar dos meus compatriotas desassistidos dos cafundós, embora, como todo mundo, tenha sérias dúvidas a respeito do que poderão fazer sem um mínimo de condições. Se nos hospitais do Rio falta de tudo, de soro a esparadrapo, ninguém precisa de muita imaginação para adivinhar o cenário desolador que os espera.
Há quem reclame que os estrangeiros foram dispensados do Revalida. É uma reclamação justa, ainda que inútil, dadas as circunstâncias. Imagino que o exame sirva para comprovar até que ponto os profissionais estão familiarizados com a medicina atual, mas se há uma coisa que os estrangeiros não vão encontrar nas cidades para onde estão sendo designados é medicina atual: poderão requisitar o mais elementar Raio-X? Ou um hemograma que fique pronto antes de ficar desatualizado? Terão ao menos material de sutura? Antibióticos? Vermífugos?
Quer dizer: serão, na prática, pouco mais que curandeiros, por melhor que tenha sido a sua formação. E, ainda assim, é possível que alguns se saiam muito bem, porque há pessoas que tem o dom de curar com um nada. Um dos grandes livros que li, e que recomendo a todos os angloparlantes, é “The cunning man”, do médico e escritor canadense Robertson Davies, que conta a história de um desses extraordinários curadores.
Há quem reclame também que os médicos não vão conseguir se entender com os seus pacientes por não saberem falar português. Isso é detalhe, e não muito importante. Em que língua a jovem médica espanhola vai se comunicar com os índios? Aliás, em que língua se comunicam os médicos da Funai com tribos recém-descobertas? E os Médicos sem Fronteiras, que vêm de todos os países do mundo e vão para onde são necessários?
Levando o exemplo ao extremo, não custa lembrar que os bons veterinários sempre trataram toda a sorte de bichos com bastante sucesso, sem entender uma só palavra do que miam ou relincham.
O fato é que se há pessoas sem médicos em algum lugar, e se há médicos dispostos a atendê-las, temos mais é que recebê-los de braços abertos, sejam turcos, chilenos ou imenitas. Não chego ao extremo de dizer que é melhor um mau médico do que médico nenhum, porque os maus médicos matam mais do que a natureza sozinha — mas até sob este aspecto os estrangeiros não poderão fazer muita coisa, por absoluta falta de condições e de medicamentos.
o O o
Dito isso, acho escandalosa, ultrajante mesmo, a importação dos médicos cubanos. Não por serem cubanos, é óbvio, nem por duvidar da qualidade da sua formação, mas pela forma enviesada como a questão foi e está sendo conduzida. Nada justifica a proibição de trazerem consigo as suas famílias; nada justifica que o governo cubano receba os seus salários; nada justifica que o Brasil, um país que se quer democrático, compactue com essa mercantilização que transforma pessoas em commodities.
Os defensores do tráfico humano alegam que, consultados, os médicos cubanos não se queixam, e que, para eles, qualquer quantia que venham a receber, por menor que seja, será superior ao que receberiam em Cuba. É um argumento ofensivo, que considera correta uma remuneração vil porque, em outros países, poderia ser pior. Ora, assim se pode justificar qualquer afronta à dignidade humana, a começar pela semi-escravidão dos costureiros bolivianos que trabalham para as grifes de luxo de São Paulo: por incrível que pareça, eles também estariam em pior situação em La Paz.
O artigo 461 da CLT é claro. Ele estipula que trabalhadores com função idêntica, exercendo idênticas tarefas para o mesmo empregador, devem receber salários iguais, sem distinção de sexo, idade ou nacionalidade.
Chama-se a isso justiça. Enquanto os médicos cubanos não tiverem condições de trabalho iguais às dos demais médicos estrangeiros, o Brasil estará compactuando com uma forma de servidão aviltante, que não lança desdouro sobre o servidor, mas cobre de vergonha indelével o empregador.
o O o
Ah, sim: como fica a situação dos brasileiros formados em Cuba que estão aproveitando o programa do governo para voltar ao Brasil? Pouco ouvi falar sobre eles, e menos ainda sobre a sua situação legal. O seu dinheiro também será enviado para Havana? Ficarão dispensados do Revalida mesmo trabalhando em seu (nosso) próprio país?
(O Globo, Segundo Caderno, 29.8.2013)