sexta-feira, 19 de outubro de 2012

Nós podemos mudar o mundo, por Sérgio Abranches

Via ecopolítica
11.10.2012

Ouvi Jane Fonda dizer que tudo no mundo está sujeito à lei da entropia, à segunda lei da termodinâmica, segundo a qual tudo decai. “Só uma dimensão da vida não obedece a esse determinismo da decadência”, ela disse, “o espírito humano”. Jane Fonda falava do aumento da longevidade e, portanto, do desafio de uma vida ativa, criativa e útil no “terceiro estágio da vida”. Mas essa reflexão vai além, ela transcende a própria existência individual. E ela nos ensina que podemos conquistar grandes mudanças, com um livro, um filme, um celular.

Quando um jovem resolve ler hoje uma das grandes obras de Herman Hesse, porque estamos comemorando o cinquentenário de sua morte, ele está dando provas desse poder do espírito humano de transcender, de enfrentar a decadência e o esquecimento. Mesmo que não encontre no livro um universo contemporâneo ao seu, encontrará ideias e valores que continuam contemporâneos. Menciono Hesse, porque ele foi um autor capaz de influenciar profundamente toda uma geração e ficou algumas décadas sem ser reeditado em muitos lugares, como se suas obras tivessem perdido a energia espiritual que continham. Mas não perderam. E a reedição de seus livros – Demian, Sidarta, O Jogo das Contas de Vidro – promove esse reencontro entre as novas gerações e o produto imorredouro do espírito humano de Hesse.

Thomas Mann, em plena angústia com o destino tenebroso de sua Alemanha, foi visitar Herman Hesse em sua casa em Montagnola, Ticino, em 1943. E viu nele, exatamente, esse galgar a escada do espírito humano de que fala Jane Fonda. Ele diz:

“Eu o conheci primeiramente de forma mais íntima quando, sofrendo o primeiro choque da perda de meu país, minha casa e meu coração, eu o via frequentemente em sua bela casa e jardim em Ticino. Como eu o invejava naqueles dias! – não tanto por sua segurança em um país livre, mas acima de tudo pelo grau arduamente conseguido de liberdade espiritual na qual me superava, por seu afastamento filosófico de toda a política alemã. Não havia nada mais confortante, mais curativo nesses dias confusos que a sua conversa.”

Essas manifestações do espírito humano têm um poder que vai muito além do indivíduo. São capazes de incendiar corações e mentes, fazer diferença no mundo e provocar mudanças revolucionárias. Em um momento no qual as utopias estão sendo substituídas pelas distopias, pelas visões de um futuro trágico, é importante pensar nessa força do espírito humano livre.

Há 50 anos, em setembro de 1962, foi publicado nos Estados Unidos o livro Silent Spring, de Rachel Carson, cientista e ecologista. Um marco fundador do ambientalismo no EUA. Um exemplo ainda hoje insuperado de como escrever sobre evidências científicas de forma acessível ao grande público, sem concessões simplificadoras. Rachel Carson já estava enfrentando o câncer de mama que a matou em 1964, quando escreveu esse livro brilhante. Em 1960, havia passado por uma mastectomia radical. Silent Spring, é um livro em defesa da vida, denunciando, pela primeira vez, com base científica irrefutável, o envenenamento do ambiente pelo uso de pesticidas sintéticos, principalmente o DDT. “Se continuarmos envenenando a natureza, ela um dia vai nos envenenar”, era sua mensagem central. Vendeu dois milhões de cópias.

Não era o primeiro livro de Rachel. Dez anos antes da publicação de Silent Spring, ela ganhou vários prêmios de prestígio por The Sea Around Us (O Mar à nossa volta). Em 1964, já muito debilitada pela doença prestou depoimento no Senado sobre o uso de pesticidas sintéticos. O depoimento e o sucesso popular do livro mudariam a política regulatória do país. Rachel é parte da história que levou ao banimento mundial do DDT. No depoimento, o senador Democrata pelo Alaska, Ernest Gruening percebeu, com clareza, essa força do espírito humano e dos livros, ao dizer a Rachel que:

“De vez em quando na história da humanidade, um livro apareceu que mudou substancialmente o curso da história.”

Silent Spring fez isso. Quando estava na faculdade de sociologia, li uma tese de doutorado sobre duas cidades idênticas, no meio oeste do EUA, numa área de indústria metalúrgica e química muito poluída. Vizinhas e gêmeas, apenas um rio as separava. Elas tinham políticas sobre poluição do ar totalmente distintas, porém. Uma era totalmente complacente com a poluição. A outra havia adotado legislação muito rigorosa de controle. O pesquisador não encontrou qualquer causa objetiva – demográfica, racial, etária, socioeconômica, partidária – que explicasse a diferença. O fator determinante dessa atitude divergente sobre poluição era um casal de ambientalistas, nos seus 60 anos, muito carismático e que mantinha um programa na rádio local. Com suas explicações sobre as causas e danos da poluição ao ambiente e à saúde humana, construíram as bases objetivas para uma das primeiras leis de proteção da água e do ar nos Estados Unidos. Novamente a força do espírito humano de que nos fala Jane Fonda. Ele ganha força com a idade, porque acumula sabedoria e capacidade de chegar até o outro.

É possível mudar o mundo com ideias, com palavras, com livros, com atitudes. Com todas as manifestações do espírito humano. Por isso precisamos cultivar esse espírito, individualmente, cuidando de nosso próprio aprimoramento intelectual e como seres humanos, e de toda a nossa gente, lutando pela valorização e pelo investimento na educação de qualidade, na cultura sob todas as suas formas, na independência da produção cultural, na ciência e no jornalismo de qualidade em todas as mídias. Não são as produções panfletárias, nem os artefatos ideológicos que mudam o mundo. São as ideias propostas com qualidade, a boa literatura, a boa explicação científica, o bom teatro, o bom cinema, o bom jornalismo.

Esse espírito humano, essa força da inteligência e da capacidade criativa, progride, melhora com a idade e com o tempo. Não decai. Progride porque se enriquece com mais sabedoria, paz interior, tolerância e visão de mundo. (Não confundir nunca tolerância: o respeito pela diferença, pelo diverso; com complacência: a aceitação da delinquência.) Exemplos dessa força do espírito humano temos e tivemos muitos nessa nossa turbulenta era de risco e de todas as ias vezes idades: Nelson Mandela, Wangari Maathai, Malala Yousafzai.

Malala Yousafzai é uma garota paquistanesa de 14 anos. Uma defensora corajosa e inspiradora da educação das meninas, em um país que as quer excluir da escola, à força. Ela foi baleada, na última terça-feira, por homens mascarados, que entraram no ônibus da escola, chamaram seu nome e atiraram nela. Está em estado grave no hospital, mas deve se recuperar e sem sequelas, segundo os médicos. Não é um caso isolado. Nem de brutalidade e repressão contra meninas que querem estudar, nem de atos de bravura e heroísmo, de crença na vitória do espírito, da resistência pacífica, mas determinada e resoluta contra a opressão, a violência e a tirania.

Como Herman Hesse escreveu em Gertrude:

“Se você odeia uma pessoa, você odeia algo nela que é parte de você mesmo. O que não é parte de nós, não nos perturba.”

Casos como os de Malala Yousafazi poderiam ser razão para o pessimismo. Mas, quando olhamos todos os casos de vitória do espírito humano – e o espírito humano é sempre a força do bem – temos certeza de que sua causa será vitoriosa, como foi vitoriosa a causa de Rachel Carson. Malala vencerá seu drama pessoal e sua causa universal.

Termino com o espírito cosmopolita de Herman Hesse. Debilitado pela doença, mas forte no espírito, Hesse não pôde ir a Estocolmo receber o Prêmio Nobel, em 1946. Mandou um discurso por escrito. Transcrevo dele algumas partes são totalmente contemporâneas aos valores do cosmopolitanismo.

“Minha saúde sempre foi delicada, e eu acabei um inválido permanente pelos males dos anos, desde 1933, que destruíram o trabalho de minha vida e me assoberbaram novamente com pesadas obrigações. Mas minha mente não se quebrou, e eu me sinto um parente de vocês e da ideia que inspirou a Fundação Nobel, a ideia de que a mente é internacional e supranacional, que ela tem que servir não à guerra e à aniquilação, mas à paz e à reconcialiação.

Meu ideal, contudo, não é anular as características nacionais, na busca de uma humanidade uniforme. Ao contrário, que a diversidade de todas as formas e cores tenham longa vida nesta nossa amada Terra. Que coisa maravilhosa é a existência de tantas raças, tantos povos, tantas línguas, e tantas variedades de atitude e visão!”