quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Bastidores da tragédia Kaiowá-Guarani: Multinacionais, partidos, Justiça…

Via Instituto Humanitas Unisinos
26.10.2012

Antropólogo e jornalista, Spensy Pimentel deixou, em 2007, o trabalho como repórter especial em Brasília, na Agência Brasil, para se dedicar à pesquisa de doutorado na USP, sobre a vida política dos Guarani-Kaiowá, atualmente em fase de conclusão. Spensy já tinha defendido o mestrado, também na USP, sobre a epidemia de suicídios verificada entre esses indígenas desde os anos 80. Realizou pesquisa no Mato Grosso do Sul exatamente no periodo em que os conflitos entre índios e fazendeiros se acirraram, desde 2009.

Em 2011, Spensy Pimentel lançou, junto com parceiros, o vídeo "Mbaraká – A Palavra que age", sobre o envolvimento dos xamãs Guarani-Kaiowá com a luta pela terra em MS.

Nesta conversa com Terra Magazine, 25-10-2012, o antropólogo Spensy Pimentel elenca alguns dos atores presentes nos bastidores dessa tragédia: - (…) O movimento de recuperação das terras, que organiza as grandes assembleias (Aty Guasu), é uma reação a esse confinamento que o Estado brasileiro impôs aos Kaiowá e Guarani.

Diz ainda Spensy Pimentel: - Esse confinamento foi realizado para viabilizar a instalação do agronegócio ali: cana, soja, gado, milho produzidos para exportação, em parceria (insumos, apoio tecnológico e, muitas vezes, financiamento) de multinacionais como Bunge, Cargill, ADM, Monsanto…

Eis a entrevista.

 Quando fui ao Mato Grosso do Sul, em 1999, encontrei dados que davam conta de 308 suicídios entre 1986 e 1999. Recentemente, a Sesai (Secretaria Especial de Saúde Indígena) divulgou que, de 2000 a 2011, foram mais 555 casos. Como os indígenas percebem o fenômeno?

Há uma série de dificuldades para acessar o que os Kaiowá e Guarani entendem sobre essas mortes. Em primeiro lugar, pode-se compreender que, para qualquer família em que acontece uma morte desse tipo, há, muitas vezes, certa reserva, certo receio de falar a respeito. As informações que pude obter se baseavam, em geral, na conversa com pessoas que conviviam com as famílias onde os casos ocorreram. A partir daí, é possível obter dados sobre as motivações das pessoas – boa parte, jovens – e sobre a forma como os familiares reagem. Em geral, posso dizer que, ao contrário do que já avaliaram algumas pessoas, essas mortes são, sim, um grande incômodo para as famílias Kaiowá e Guarani.

Por que isso está acontecendo?

Não é por acaso que essas mortes começaram a acontecer em maior número desde os anos 80. Os Kaiowá e Guarani mais antigos não se lembram de ter visto mais que um ou dois casos de enforcamentos antes desse período. Esse tipo de morte existia, mas era raro. Nos anos 80, no fim do regime militar, completa-se o processo de expulsão desses indígenas das áreas que eles ocupavam, em geral, nas beiras de rios e córregos, por todo o sul de Mato Grosso do Sul. Dezenas de grupos são literalmente despejados dentro das antigas reservas demarcadas pelo Serviço de Proteção ao Índio entre 1915 e 1928 para liberar a região para o agronegócio. É o que alguns chamam de “confinamento”, pois as antigas áreas, somadas, não passavam de 18 mil hectares. O processo não ocorreu sem reação por parte dos indígenas. Se você olhar os arquivos, vai ver notícias sobre grupos que resistiam aos despejos já em 1978, 1979.

O confinamento tem relação direta com essa tragédia dos suicídios, então?

Essa ação – movida em plena ditadura, é sempre bom lembrar – gerou uma mistura muito grande de famílias vindas de lugares diferentes, sem laços construídos historicamente, disputando recursos em áreas extremamente limitadas. Essas pessoas ficaram submetidas a alguns grupos recrutados pela Funai, como antes pelo SPI, em torno de um "capitão", que era um indígena empoderado pelo Estado para, em alguns lugares, ser uma espécie de microditador ali do local. Essas figuras recebiam apoio da ditadura para reprimir os demais indígenas que tentassem voltar para seus lugares de origem, como eles fazem até hoje, em casos como o de Pyelito. Foi nesse ambiente autoritário, opressor e miserável que os suicídios se multiplicaram. Só muito recentemente a Funai deixou de empoderar esses capitães.

As pessoas têm uma enorme ansiedade de voltar para seus lugares de origem, que chamam de "tekoha" (lugar onde se pode viver do nosso jeito). Elas querem escapar das reservas porque, ali, sentem que vivem mal. O ambiente nesses lugares é, hoje, tão precário que os jovens estão fazendo rap, eles se identificam com os problemas que grupos como o Racionais MC’s expõem em suas músicas, em relação às favelas de São Paulo: violência, racismo… Em suma, o Brasil impôs um projeto para os Kaiowá e Guarani que eles não aceitam. CONTINUA!