sexta-feira, 23 de agosto de 2013

Alyne morreu e o Estado continua omisso,
por Flávia Piovesan e Carmen Hein de Campos

Via blog do Noblat/O Globo
22.08.2013

Em 16 novembro de 2002, morreu Alyne da Silva Pimentel Teixeira: 28 anos, afro-descendente, pobre, grávida de 6 meses, deixando uma filha de 5 anos. Em 11 de novembro, Alyne foi a um Centro de Saúde em Belford Roxo, em virtude de fortes sintomas indicando uma gravidez de alto risco. Por orientação médica, retornou à sua casa, regressando ao Centro dois dias depois, com dores ainda mais agudas, sem que no exame médico fossem detectados os batimentos cardíacos do feto.

Com a demora na realização do parto induzido, 6 horas depois, Alyne deu à luz a um feto natimorto. A cirurgia para a retirada da placenta ocorreu somente 14 horas depois do parto. Em virtude da gravidade do caso, Alyne foi transferida para um hospital.

Contudo, a ausência de ambulância e a indisponibilidade de leito culminaram com a sua morte 5 dias após a ida ao Centro de Saúde. O drama de Alyne simboliza a violência da morte materna evitável, fruto da dolorosa peregrinação por hospitais, do sofrimento agravado pela precariedade do sistema de saúde e da omissão de políticas públicas a violar o direito à maternidade segura.

Desde 2003, tramita na Justiça uma ação de indenização proposta pela família de Alyne. Diante da demora na prestação jurisdicional, em 2007, o caso foi submetido ao Comitê para a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW).

Em agosto de 2011, ineditamente, o Comitê da ONU condenou o Estado brasileiro pela morte de Alyne, recomendando:

a) indenizar a família de Alyne;

b) garantir o direito das mulheres a uma maternidade segura e o acesso adequado aos procedimentos obstétricos;

c) proporcionar a formação profissional adequada aos trabalhadores de saúde;

d) assegurar a observância de parâmetros nacionais e internacionais de saúde reprodutiva nos serviços públicos de saúde; e

e) punir os profissionais de saúde que violem os direitos reprodutivos das mulheres e seu direito de acesso à saúde.

O caso é emblemático por constituir a 1ª condenação internacional referente à morte materna, sendo um relevante precedente para a proteção dos direitos humanos das mulheres.

A gravidez ainda apresenta sérios riscos à vida das mulheres: uma mulher morre a cada minuto no mundo por causa relacionada à gravidez ou ao parto (UNFPA, 2008) — o que corresponde a mais de meio milhão de mortes anualmente (UNFPA, 2007; 2008).

Mulheres que vivem em zonas rurais e com baixo nível socioeconômico são as que mais correm risco de morrer ou de sofrer as consequências de uma gravidez sem o atendimento necessário (CRR, 2008).

Reduzir em 75% as mortes maternas evitáveis, até 2015, é o 5º Objetivo do Desenvolvimento do Milênio (ODM) assumido pelo Estado brasileiro. Apesar da redução do óbito materno no Brasil nas últimas décadas, a mortalidade materna persiste como sério problema de saúde pública no país.

No entanto, passados mais de 10 anos da morte de Alyne e dois anos da decisão do Comitê CEDAW, o Estado brasileiro ainda não cumpriu qualquer das recomendações. O risco de descumprimento da decisão internacional não apenas viola o direito da vítima e de seus familiares à reparação, como também afronta os direitos das mulheres brasileiras à maternidade segura, demandando o dever do Estado de adotar políticas públicas no campo da saúde reprodutiva (como medida preventiva a afastar mortes maternas evitáveis).

Traduz, ainda, uma incoerente e inaceitável postura do Estado brasileiro — que, na qualidade de crescente ator global a endossar o multilateralismo, não merece afrontar a credibilidade, a legitimidade e a eficácia de instituições internacionais.

O caso Alyne foi apreciado por uma instância internacional — o Comitê CEDAW — tendo como fundamento o Protocolo Facultativo à Convenção sobre a Eliminação da Discriminação contra a Mulher, que habilita o Comitê a apreciar denúncias de violações da Convenção. Foi o mesmo Estado brasileiro que, no livre e pleno exercício de sua soberania, ratificou o Protocolo aceitando o mecanismo de denúncia — que, agora, porque condenado, recusa-se a cumprir.

Implementar integralmente a decisão internacional é uma exigência jurídica decorrente dos tratados firmados e da responsabilidade do Estado por morte evitável de mulheres. Uma gravidez segura, com um atendimento qualificado e humanizado, é um direito de todas as mulheres.

Flávia Piovesan é procuradora do Estado de São Paulo e professora da PUC-SP e Carmen Hein de Campos é advogada.