segunda-feira, 19 de março de 2012
Carta aberta ao governador da Bahia
Via blog do Noblat
Por João Francisco Araújo Maia -
18.3.2012
Prezado governador Jaques Wagner,
Eu me chamo João Francisco, sou cidadão brasileiro e passei o carnaval em sua terra. Maior herdeira da cultura africana no Brasil, a Bahia possui nosso melhor carnaval. É indescritível subir a ladeira do Curuzu com o Ilê Aiyê e ir atrás do trio (sem cordas) elétrico.
Mesclando Ialorixás e Babalorixás, Salvador resgata o ritmo dos tambores africanos, o molejo de quadris negros prenhes de sensualidade e, infelizmente, a não integração de raças e classes que marca essa terra de carnavais, malandros e heróis.
Sendo o Brasil um país chagado pela desigualdade em todas as suas dimensões, o carnaval é nossa esperança de redenção, o símbolo cultural que alimenta a transformação do utópico em tópico. O carnaval é, “pelo menos”, símbolo (e nenhuma revolução se fez sem a energia do simbólico) da igualdade e da integração de raças e classes, de povos e culturas.
Governador, venho lhe pedir que intervenha para reverter esta privatização do carnaval baiano ocorrida nos últimos anos. O senhor entrará para a história como estadista, este tipo de homem público raro nos dias atuais: alguém que antecipa o futuro, denuncia nossa anestesia social e resgata elevados princípios éticos como balizadores das políticas públicas.
O carnaval na Bahia foi privatizado. Certa vez escutei atônito um famoso cantor baiano dizer em uma entrevista televisiva: “A invenção das cordas no carnaval foi uma ideia extraordinária de privatização elaborada por nossos empresários”.
Na aparência, parece ser uma boa ideia, pois dilui os custos de financiamento dos blocos e gera (sub) empregos para os cordeiros.
Na essência, cria um custo moral, para a sociedade, e financeiro, para o estado, inaceitável.
Moralmente, é inadmissível a separação imaginária entre brancos incluídos e negros pobres feita pelas cordas.
Além de termos mais de um século de assinatura da Lei Áurea, temos o exemplo vivo de Martin Luther King a nos iluminar.
Se a linha que separava negros e brancos nos bancos de ônibus nos EUA de 1950 era imaginária, no Brasil ela toma a forma de uma corda de bloco carnavalesco em pleno século XXI.
Financeiramente, representa um custo oneroso para o estado. O carnaval em Salvador ocorre em ruas públicas, com o aparato policial do estado mobilizado e ampliação considerável das brigas de rua motivadas pela desigualdade exposta. A consequência, além da intervenção mais pesada da segurança, é também o aumento das internações hospitalares financiadas pelo SUS.
Será que em outros municípios complicados em termos de segurança pública como Rio de Janeiro, Recife e Olinda, onde o carnaval de rua impera sem corda, há tanto incremento da violência?
Governador, desigualdade revolta. Legitimar este escárnio, como fazem as cordas dos blocos baianos, gera custos orçamentários para o estado da Bahia nas rubricas de segurança e saúde pública.
Proibir o uso de cordas em espaços públicos, além de ser uma política pública promotora da igualdade social e racial, pode gerar uma economia considerável para o estado da Bahia.
O papel do pensamento crítico e progressista, de Marx aos frankfurtianos, sempre foi evidenciar esta contraposição entre aparência e essência. A ideologia, como falsa consciência da realidade, dificulta nossa visão sobre a essência. Tornar o espaço público do carnaval uma esfera privatizada transforma relações culturais de gratuidade e integração sócio-racial em mercadorias fetichizadas.
Na formulação de políticas públicas, uma armadilha precisa ser desarmada: a tentação de sempre sobrepor a lógica da eficiência à lógica da legitimidade.
Se o mercado encontra-se na esfera privada e precisa ser eficiente, a política está na esfera pública e precisa ser legítima. O carnaval de Salvador ocorre em um espaço público, portanto passível de regulação do Estado. Privatizá-lo com cordas significa sobrepor o interesse de grandes grupos “artístico(?)-comerciais” ao interesse da maioria da população.
O papel de um homem público progressista é construir as bases de uma nova legitimidade, pautada na essência e não na aparência. E a essência do carnaval é a integração de raças e classes.
Alguns dirão que é a privatização do carnaval na Bahia que possibilita a pipoca existir sem custos. Balela! Afinal, a existência de cordas remonta às últimas décadas, ao passo que o carnaval soteropolitano remonta aos últimos séculos.
É legítimo que os blocos ganhem dinheiro com patrocínio (como já fazem os blocos sem cordas), com incremento de financiamento do poder público e com os camarotes que podem oferecer um serviço diferenciado.
O que é inaceitável é a privatização do espaço público feito pelas cordas, concretizando o racismo como exemplo e tornando a desigualdade brasileira um escárnio a ser celebrado.
Governador, todo processo de mudança inicia-se com a sensação de que algo está errado. No inicio, como a opressão está legitimada, ela toma a forma de algo “normal”. Aos poucos, uma minoria trava um debate ferrenho para tentar mostrar a anormalidade da suposta “normalidade”. Com o tempo, o movimento de mudanças ganha força e esta se torna inevitável.
Vejamos o debate, no Brasil pré-republicano, entre abolicionistas e escravocratas. Os primeiros eram uma minoria que ganhou força com a inevitabilidade das mudanças. Da Lei do Ventre Livre, incrementalmente, chegamos à Lei Áurea.
Torço para que esta carta aberta chegue ao senhor, governador. Tenha a coragem e disposição para enfrentar os grandes interesses comerciais que privatizaram nossa maior festa de integração social e racial. Antecipará o futuro! Afinal, toda corda possui um pouco de navio negreiro.
João Francisco Araújo Maia é mestre em Ciência Política pela UFPE e especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental
fonte
Por João Francisco Araújo Maia -
18.3.2012
Prezado governador Jaques Wagner,
Eu me chamo João Francisco, sou cidadão brasileiro e passei o carnaval em sua terra. Maior herdeira da cultura africana no Brasil, a Bahia possui nosso melhor carnaval. É indescritível subir a ladeira do Curuzu com o Ilê Aiyê e ir atrás do trio (sem cordas) elétrico.
Mesclando Ialorixás e Babalorixás, Salvador resgata o ritmo dos tambores africanos, o molejo de quadris negros prenhes de sensualidade e, infelizmente, a não integração de raças e classes que marca essa terra de carnavais, malandros e heróis.
Sendo o Brasil um país chagado pela desigualdade em todas as suas dimensões, o carnaval é nossa esperança de redenção, o símbolo cultural que alimenta a transformação do utópico em tópico. O carnaval é, “pelo menos”, símbolo (e nenhuma revolução se fez sem a energia do simbólico) da igualdade e da integração de raças e classes, de povos e culturas.
Governador, venho lhe pedir que intervenha para reverter esta privatização do carnaval baiano ocorrida nos últimos anos. O senhor entrará para a história como estadista, este tipo de homem público raro nos dias atuais: alguém que antecipa o futuro, denuncia nossa anestesia social e resgata elevados princípios éticos como balizadores das políticas públicas.
O carnaval na Bahia foi privatizado. Certa vez escutei atônito um famoso cantor baiano dizer em uma entrevista televisiva: “A invenção das cordas no carnaval foi uma ideia extraordinária de privatização elaborada por nossos empresários”.
Na aparência, parece ser uma boa ideia, pois dilui os custos de financiamento dos blocos e gera (sub) empregos para os cordeiros.
Na essência, cria um custo moral, para a sociedade, e financeiro, para o estado, inaceitável.
Moralmente, é inadmissível a separação imaginária entre brancos incluídos e negros pobres feita pelas cordas.
Além de termos mais de um século de assinatura da Lei Áurea, temos o exemplo vivo de Martin Luther King a nos iluminar.
Se a linha que separava negros e brancos nos bancos de ônibus nos EUA de 1950 era imaginária, no Brasil ela toma a forma de uma corda de bloco carnavalesco em pleno século XXI.
Financeiramente, representa um custo oneroso para o estado. O carnaval em Salvador ocorre em ruas públicas, com o aparato policial do estado mobilizado e ampliação considerável das brigas de rua motivadas pela desigualdade exposta. A consequência, além da intervenção mais pesada da segurança, é também o aumento das internações hospitalares financiadas pelo SUS.
Será que em outros municípios complicados em termos de segurança pública como Rio de Janeiro, Recife e Olinda, onde o carnaval de rua impera sem corda, há tanto incremento da violência?
Governador, desigualdade revolta. Legitimar este escárnio, como fazem as cordas dos blocos baianos, gera custos orçamentários para o estado da Bahia nas rubricas de segurança e saúde pública.
Proibir o uso de cordas em espaços públicos, além de ser uma política pública promotora da igualdade social e racial, pode gerar uma economia considerável para o estado da Bahia.
O papel do pensamento crítico e progressista, de Marx aos frankfurtianos, sempre foi evidenciar esta contraposição entre aparência e essência. A ideologia, como falsa consciência da realidade, dificulta nossa visão sobre a essência. Tornar o espaço público do carnaval uma esfera privatizada transforma relações culturais de gratuidade e integração sócio-racial em mercadorias fetichizadas.
Na formulação de políticas públicas, uma armadilha precisa ser desarmada: a tentação de sempre sobrepor a lógica da eficiência à lógica da legitimidade.
Se o mercado encontra-se na esfera privada e precisa ser eficiente, a política está na esfera pública e precisa ser legítima. O carnaval de Salvador ocorre em um espaço público, portanto passível de regulação do Estado. Privatizá-lo com cordas significa sobrepor o interesse de grandes grupos “artístico(?)-comerciais” ao interesse da maioria da população.
O papel de um homem público progressista é construir as bases de uma nova legitimidade, pautada na essência e não na aparência. E a essência do carnaval é a integração de raças e classes.
Alguns dirão que é a privatização do carnaval na Bahia que possibilita a pipoca existir sem custos. Balela! Afinal, a existência de cordas remonta às últimas décadas, ao passo que o carnaval soteropolitano remonta aos últimos séculos.
É legítimo que os blocos ganhem dinheiro com patrocínio (como já fazem os blocos sem cordas), com incremento de financiamento do poder público e com os camarotes que podem oferecer um serviço diferenciado.
O que é inaceitável é a privatização do espaço público feito pelas cordas, concretizando o racismo como exemplo e tornando a desigualdade brasileira um escárnio a ser celebrado.
Governador, todo processo de mudança inicia-se com a sensação de que algo está errado. No inicio, como a opressão está legitimada, ela toma a forma de algo “normal”. Aos poucos, uma minoria trava um debate ferrenho para tentar mostrar a anormalidade da suposta “normalidade”. Com o tempo, o movimento de mudanças ganha força e esta se torna inevitável.
Vejamos o debate, no Brasil pré-republicano, entre abolicionistas e escravocratas. Os primeiros eram uma minoria que ganhou força com a inevitabilidade das mudanças. Da Lei do Ventre Livre, incrementalmente, chegamos à Lei Áurea.
Torço para que esta carta aberta chegue ao senhor, governador. Tenha a coragem e disposição para enfrentar os grandes interesses comerciais que privatizaram nossa maior festa de integração social e racial. Antecipará o futuro! Afinal, toda corda possui um pouco de navio negreiro.
João Francisco Araújo Maia é mestre em Ciência Política pela UFPE e especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental
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