Por Cristiane Paião
10.03.2011
De acordo com o relatório sobre os Centros de Atenção Psicossocial (CAPs) do estado de São Paulo, publicado em 2010 pelo Conselho Regional de Medicina (Cremesp), cerca de 10% da população precisa de assistência em saúde mental atualmente, seja ela eventual ou contínua. Entre as dez principais causas de incapacitação por doenças em geral, cinco são por transtornos psiquiátricos. Depressão, alcoolismo, esquizofrenia, transtorno bipolar e transtorno obsessivo-compulsivo são as mais comuns. O quadro corresponde a 12% do total de incapacitações por doenças em geral e cresce para 23% em países desenvolvidos. No mundo todo, os transtornos mentais são responsáveis por uma média de 31% dos anos vividos com incapacitação.
Ainda que os transtornos mentais representem um sério problema de saúde pública, os embates e polêmicas sobre seus diagnósticos e tratamentos, e sobre os limites entre uma doença e outra ainda são muitos. Ao longo da história da humanidade e, consequentemente, do processo de construção dos conceitos envolvendo psiquiatria, psicanálise e psicologia, diversos conceitos e paradigmas entraram em jogo e, ora se destacavam, ora caíam por terra. Isso porque a ideia de “normalidade” ou “anormalidade” está relacionada, em grande medida, a conceitos históricos, culturais e socialmente elaborados, ainda que relacionados, em grande medida, a questões físico-químico-biológicas que interferem no processo de classificação daquilo que é tido como “transtorno mental”.
Normal x anormal
De acordo com a filosofia, a “normalidade” deve ser entendida como um estado de equilíbrio do organismo, seja do ponto de vista do corpo ou da mente. Segundo João de Fernandes Teixeira, da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), a sentença “de perto, ninguém é normal” já era em grande medida professada pela filosofia e vem cada vez mais sendo estudada e desenvolvida. Embora os filósofos tenham criticado a existência de padrões de normalidade/anormalidade rígidos nos últimos tempos, uma certa classificação é plenamente possível.
“George Canguilhem, por exemplo, tem um livro clássico sobre o assunto, que se chama O normal e o patológico, em que ele nos diz que não é possível usar critérios externos, universais, para definir normalidade. Entretanto, em The disordered mind: philosophy of mind and mental illness, George Graham, filósofo da mente americano, argumenta que a mente insana é aquela na qual a racionalidade foi profundamente afetada. Embora não possamos nos ver mais como um animal inteiramente racional, os distúrbios da racionalidade, quando em excesso, nos levam à mente insana. Nesse sentido, a insanidade é a incoerência quase total, o que leva também a uma desorganização das emoções – as emoções não estão inteiramente separadas da razão, senão, não seríamos sequer capazes de falar delas”, explica Teixeira.
Segundo o pesquisador da UFSCar, a filosofia da mente nunca se preocupou especificamente com o transtorno mental. O livro de Graham é um dos pioneiros, nesse sentido. Para os estudiosos da área, o transtorno mental é enfocado como um dos tipos de problemas que ocorrem na interação entre mente e cérebro. “Esse é o chamado problema mente-cérebro, e é a principal questão da filosofia da mente. Nesse sentido, há várias perguntas como, por exemplo: ‘a depressão e a tristeza podem afetar o cérebro?’ Ou melhor, ‘como uma série de acontecimentos ruins na vida de uma pessoa pode levar a uma modificação de neurotransmissores?’ E há a pergunta na direção inversa: ‘como drogas biopsiquiátricas podem afetar nossa maneira de pensar?’ ‘Será que elas agem só no cérebro ou também na mente?’”, enumera.
Do ponto de vista psiquiátrico/psicológico, as noções de “normalidade” ou “anormalidade” se definem também por meio de padrões culturais e sociais, mas, principalmente, por meio de reações químico-físico-biológicas. Em doenças graves como esquizofrenia, por exemplo, que compõe o grupo das psicoses, os processos de pensamento, entendimento e processamento de informações ficam desconexos e existem graves alterações no contato com a realidade. O paciente sofre com paranoias, transtornos graves de humor, delírios e alucinações (visuais, sinestésicas, e sobretudo auditivas). Diante de um caso como esse, não fica difícil identificar a “anormalidade”. De modo geral, essas características se repetem em vários dos transtornos mentais, mas existem também transtornos relativamente menos “graves” que são mais difíceis de serem diagnosticados e que dependem, em grande medida, de conceitos históricos e culturais, como a depressão, por exemplo. Embora seu potencial para afetar negativamente a vida das pessoas seja grande – pois leva à incapacitação para realizar atividades comuns do dia-a-dia, como diminuição do apetite, alteração de sono, de peso, ineficiência para processar informações, concatenar ideias e fazer escolhas –, durante muito tempo, a depressão não foi encarada como transtorno, e apenas recentemente passou a ser tratada com a devida seriedade. Continua