Por Conceição Freitas
12.03.2011
O que fazem os japoneses no Japão é algo que sempre me intrigou, do mesmo modo que é inquietante saber que há cidades que brotaram nas proximidades de vulcões, em geleiras, no deserto, regiões que rejeitam a presença humana. Como se explica que um povo tenha fundado uma civilização num território onde o chão pode sumir a qualquer momento? Deve haver explicações históricas, mas pode-se dizer que o japonês é antes de tudo um forte. Também se pode supor que, dada a ocupação milenar do território, mesmo em condições tão instáveis, o japonês carrega no corpo, no sangue e na alma a certeza de que a morte e a destruição são parte indissociável da vida.
Conhecer e entender a alma japonesa é um exercício que instiga o pensador ocidental. O filósofo francês Henri-Pierre Jeudy diz em Percorrer a cidade que a possibilidade constante da catástrofe fez com o japonês transformasse a morte num modo de vida. Sintomaticamente, eles conservam com esmero suas tradições, mesmo sabendo que, a cada novo terremoto, tudo terá se ser reconstruído. E as pontes, os monumentos, os templos, tudo é constantemente refeito no Japão, tudo nasce e morre, e morre e renasce.
Escreve Jeudy: “A catástrofe podendo surgir a qualquer momento, a repetição de seus inumeráveis rituais cotidianos não tem a função de conjurá-la, ela impõe muito mais a visão comunitária de um tempo infinito, de um tempo liberado de suas rupturas. O território treme, aquilo que o ocupa se desmorona, mas o tempo nunca é atingido pelo desastre da extensão. O tempo é uma pura abstração que os ritos tradicionais assinalam por simples replicação mimética.”
O japonês conserva fortemente no corpo e na memória suas tradições culturais porque sabe que lá fora, nas obras de arquitetura e engenharia, há uma instabilidade intrínseca. Talvez eles também saibam que nenhuma tecnologia, por mais avançada que seja, terá o poder de evitar a destruição causada por um terremoto de grandes proporções. O japonês, mesmo sendo tão tecnologicamente avançado, sabe que o engenho humano tem um limite e que a força da Terra é ilimitada.
O filósofo também acredita que a sensação contínua de iminente catástrofe explica o hábito japonês de dizer sim a tudo, mesmo quando quer dizer não. O “hai-hai-hai” (sim, sim, sim) que eles repetem tão mecanicamente é na verdade seu modo de lidar com o imprevisível da vida. “Eis que estamos de acordo, mas o que pode acontecer agora não depende nem de mim nem de você, e podemos esperar o pior”, é o que ele diz quando concorda com tudo o que lhe é dito.
O Japão, em si mesmo, é a comprovação da teimosia humana em habitar a Terra. Somos tão teimosos que aqui estamos. Até quando… não sabemos. É o terrível milagre de existir em forma humana — saber e não saber.