quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

"Minhas raízes são aéreas"

Via Época
Por Eliane Brum
25.04.2011

A travessia de uma psicóloga sem fronteiras que escolheu ver o lado B do mundo

No dia 16 de abril, a gaúcha Debora Noal botou nas costas uma mochila que nunca passa dos 10 quilos. Dentro dela, uma lanterna de cabeça, como as que os mineiros usam, adaptadores de todos os tipos para computador, um gel para lavar as mãos, lenços umedecidos para o banho, um kit de colher, garfo e faca, um canivete, duas camisetas da organização Médicos Sem Fronteiras (MSF), duas calças jeans, um lenço cor-de-rosa para usar na cabeça em regiões muçulmanas, uma jaqueta térmica, um par de havaianas e outro de tênis, um laptop e um dicionário de português/francês/inglês. Levou ainda uma velha boneca da Magali, personagem do criador Maurício de Sousa, que troca de cara (feliz, triste, zangada, etc), para ajudá-la no atendimento a crianças nos lugares mais remotos e perigosos do mundo. Aos 30 anos, a psicóloga Debora partiu para sua décima missão na MSF. Depois de uma preparação de alguns dias em Genebra, hoje ela está no Quirguistão.

Em 2010 houve um conflito étnico entre uzbeques e quirguizes no país da Ásia Central, ex-integrante da antiga União Soviética. Muitos morreram e muitos foram presos. Debora passará de quatro a seis meses trabalhando nas prisões do “Quirgui”, como ela diz. Além de duas missões no Brasil, desde 2008 ela atua em países que a maioria de nós não sabe pronunciar o nome nem onde fica – ou apenas conhece pelo noticiário internacional. Começou pelo Haiti (três vezes, incluindo a República Dominicana), Guiné-Conacri, República Democrática do Congo (duas vezes), e recém voltara de um campo de refugiados do conflito na Líbia quando foi recrutada para o Quirguistão. Sem saber que seria despachada para um país frio, tinha acabado de raspar a cabeça para mudar de estilo.

Dias antes de sua partida, entrevistei Debora por três horas em seu pequeno apartamento em Aracaju, capital de Sergipe, cidade tranquila e praiana que ela escolheu para voltar depois de cada partida. É um apartamento despojado e muito colorido, povoado por lagartixas e girafas artesanais que ganha de presente. Perguntei a ela a razão de tantas cores. E Debora me explicou que as cores são a forma encontrada por ela para representar a variedade de cheiros que seu contato com um mundo diverso de humanidades lhe proporciona – um universo olfativo impossível de definir em palavras. Era desse mundo muito mais rico – que Debora alcança e nós não – que eu queria saber.

Nascida e criada na gaúcha Santa Maria, Debora cursou Psicologia em Santa Cruz do Sul porque buscava uma faculdade comunitária. Depois, trabalhou no Fórum Social Mundial de 2005 e, quando o evento terminou, tentou pegar uma carona para Manaus. Não conseguiu. Acabou em Recife, onde instalou CAPs (Centro de Atenção Psicossocial) em duas cidades do interior pernambucano. Saiu de lá para fazer residência em Saúde da Família em Sobral, no Ceará, mas concluiu que, sem praia, não suportaria o calor de mais de 40 graus. Acabou em Aracaju, onde fez Gestão de Saúde Pública e Saúde Coletiva. Tornou-se funcionária da secretaria estadual de Saúde e percorreu 28 municípios do Baixo São Francisco para compreender as necessidades da população e organizar o atendimento. Até hoje não tem plano de saúde privado e só reserva elogios para a cobertura do SUS na capital sergipana.

Neste ponto da história, a MSF entrou na vida de Debora e o mundo virou – o que era longe ficou perto. Como em filmes de suspense, ela recebe ligações do tipo: “Debora, temos uma missão para você”. Mas, ao contrário do cinema, em que são espiões equipados com armas de última geração que recebem esse tipo de chamada, Debora parte em missões humanitárias. E arrisca a própria vida armada apenas de conhecimento e da ideia de que a humanidade inteira é sua família.

Debora nos apresenta uma realidade que, não por acaso, pouco chega até nós. Depois de ler sua entrevista, pode parecer difícil acreditar. Mas raras vezes conheci alguém tão leve, transparente e feliz. Os olhos de Debora brilham enquanto conta sua experiência. Nos momentos de maior brutalidade se turvam – e depois voltam a brilhar. Ela não perde nenhuma oportunidade de rir e sua voz é sempre suave. E, quando abraça as pessoas, abraça. Dá vontade de se tornar amiga dela pelo resto da vida. Deve ser por isso que a legião de amigos de Aracaju a espera no aeroporto com champanha e balões quando ela chega estropiada de mais uma missão.

É isso. Debora é com certeza uma das pessoas mais vivas que conheci. E esta é uma entrevista ao mesmo tempo chocante e inspiradora. Dois adjetivos que só alguém com as qualidades de Debora, capaz de arrancar esperança nos cenários mais brutais, poderia acrescentar a um mesmo substantivo. Por isso, foi também uma entrevista muito difícil de cortar. Depois de bastante sofrimento, consegui deixá-la em um terço da original. E guardar o restante para outro momento. Vale cada linha. E meu sonho é que todos possam lê-la e ser movidos pela vontade de compartilhá-la com os amigos e também com desconhecidos.

A foto abaixo foi escolhida por Debora e feita em Porto Príncipe, no Haiti, em 2009. A criança em seu colo se chama Estelle. Sua família queimou suas duas mãos e seus dois pés numa chapa quente, causando queimaduras tão graves que a menina correu o risco de sofrer a amputação dos membros. Durante todo o tratamento, Estelle só aceitou o toque de uma pessoa: Debora.

O que Debora diz é vital. Espero que, ao ler a entrevista a seguir, cada leitor possa alcançar Debora e incluir uma porção maior de mundo dentro de si.

Como você foi parar nos Médicos Sem Fronteiras?
Debora Noal – Vige! É uma longa história.

A gente tem tempo...
Debora – Um dia um amigo me disse: “Ó, Débora, acho que você tem todo o perfil para trabalhar nos Médicos Sem Fronteiras. Você nunca pensou nisso?” Eu nunca tinha escutado sobre os Médicos Sem Fronteiras na minha vida. Não sabia nem o que era isso. Acho que era janeiro ou fevereiro de 2008. Aí eu falei... “Nossa, Médico Sem Fronteiras? Não sei...”. Ele disse: “Dá uma olhada no site...”. Mas a minha vida era bem conturbada nessa época e eu nem olhei.

Como era sua vida nesse momento?
Debora - Eu tinha um consultório com dez pacientes, que atendia à noite, fazia mestrado em Saúde Coletiva, tinha um emprego no Estado que eu adorava e morava numa cobertura de frente para o mar. Só eu e minha gata Filomena. Mas esse meu amigo ficou martelando. E eu acabei me inscrevendo. Dois meses depois eles abriram uma prova de seleção. Eu não sei se você já chegou a dar uma olhada no site, mas tem de fazer um monte de testes. Depois de você mandar seu currículo, você tem de ir fazer os testes e as entrevistas pessoalmente. Tem teste prático, técnico, de equipe, de gestão, uma entrevista em português e depois uma entrevista na língua que você escolher, que pode ser inglês ou francês.

E que língua você escolheu?
Debora – O francês. Eu passei em tudo, mas eles me falaram: “Olha, você tem de melhorar o seu francês. Tem que ter francês fluente pra ir”.

Como era o seu francês nesse tempo?
Debora - Era uma porcaria... muito ruim. Eu tinha um namorado que era francês, um parisiense. E a gente conversava muito. Mas era meu único contato com a língua. Se eu namorasse um inglês provavelmente teria escolhido o inglês e teria sido mais tranquilo. Mas eu voltei e estudei muito francês, sozinha. Eu fazia supervisão nos 28 municípios do Estado e ia escutando um CD com as aulas em francês até chegar lá. Chegava lá, trabalhava e voltava escutando. Um dia eu estava indo para uma reunião de trabalho em que eu seria promovida e ganharia um salário maior. Eu estava a caminho quando me ligaram dos Médicos Sem Fronteiras: “Olha, a gente está te ligando porque encontramos a sua missão”. Nossa... e qual é a minha missão? Continua



Um pedido a todos vocês:
Por favor, divulguem esta matéria.
Grande abraço,

Adelidia Chiarelli