Por Sérgio Abranches
04.05.2011
A aprovação da urgência do projeto de alteração do Código Florestal, independentemente da substância da proposta, cujas deficiências são notórias, revela vários problemas do funcionamento do sistema político brasileiro.
Claramente, faltam lideranças expressivas e legítimas na Câmara. O processo político brasileiro não tem sido capaz de reproduzir no mesmo patamar de qualidade as lideranças que produziu no passado. Na verdade o ideal é que mudasse para patamar superior. Isso explica como um deputado sem liderança pessoal, ligado a um partido pequeno, com posições políticas idiossincráticas consegue se eleger presidente da Câmara do Deputados, em um momento de crise e desconcerto da situação e da oposição. Explica também como esse mesmo deputado pode se apropriar autocraticamente de um projeto de interesse coletivo e múltiplas implicações econômicas, sociais e ambientais.
O governo dá sinais de descontentamento, mas se furta a liderar o processo de rediscussão da matéria para lhe dar o encaminhamento técnico proposto por seus técnicos em vários ministérios. O PT, ao que parece, faz ouvidos moucos a sua secretária de meio ambiente e às organizações do campo a ele ligadas. Prefere dar ouvido aos ruralistas, entre eles latifundiários contra os quais muitos lutaram duramente. Agora aceitam atuar como instrumentos políticos para lhes dar a maioria que não têm.
O PSDB, cheio de ruralistas assumidos e enrustidos, abriu mão de ter posição própria, deu as costas a seus ambientalistas e lideranças favoráveis a políticas sustentáveis, que vão debandando ou se desencantando. É um retrato da crise de liderança, dos partidos e do processo legislativo. Crise que não é de hoje e que se agrava a cada ciclo eleitoral.
O processo legislativo se tornou tão prisioneiro dos expedientes de conveniência e dos casuísmos, que subverteu o significado das instituições e procedimentos democráticos a ele inerentes. É eloquente demonstração disso a emergência da “urgência urgentíssima”, para compensar a banalização do regime de urgência. Projetos em regime de urgência dormitam na ordem do dia sem nunca serem votados. Outros são acordados na madrugada, para votações açodadas de matérias de conteúdo técnico relevante, cujos efeitos repercutirão muito além da conjuntura em que foram votadas.
Relatórios de plenário feitos no improviso e ao arrepio da boa técnica, acordos verbais de canto de sala, que alteram artigos, sem qualquer exame técnico mais detalhado, para acomodá-los à conveniência das voláteis alianças entre facções que dominam o plenário no momento. Leis feitas ao sabor do improviso, da força dos grupos com mais votos, independentemente do interesse público. Programas? Análise de políticas públicas? Avaliações técnicas? Só para os projetos que não interessam. Os que interessam têm esse “tratamento diferenciado”. Uma nova versão de “aos amigos tudo, aos inimigos, a lei, se possível”.
Vale para o projeto de alteração do Código Florestal e para a maioria das matérias votadas nos últimos anos. Tenho permanecido numerosas madrugadas – quando se vota naquelas Casas – diante da TV Câmara e da TV Senado, acompanhando esses procedimentos cada vez menos responsáveis, mais escondidos dos eleitores. É perfeitamente possível, hoje, ter um projeto danoso aos interesses da nação aprovado porque a maioria está magoada com o governo por não ter conseguido as verbas e nomeações que queria. Vota-se sem sequer ler o que se está votando. Veta-se projeto relevante, de interesse geral, só porque é da oposição.
A ilusória democracia do maior número de votos, que pode refletir apenas o peso dos interesses e das finanças, não legitima decisões tomadas fora dos preceitos da boa técnica legislativa e em desrespeito aos procedimentos que garantem representatividade e legitimidade às decisões.
A mudança do Código Florestal não é matéria de urgência. Não há nenhum processo de risco iminente, nenhuma crise, nenhum perigo que essa mudança venha a resolver. A única urgência é livrar desmatadores e proprietários de terra que praticaram conscientemente atos ilegais das multas e sanções que merecem receber. A urgência é só criar mais um ciclo de impunidade. Continua
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