domingo, 19 de setembro de 2010

Negar para não mudar

Via Pesquisa Fapesp
Por Marcos Pivetta, de San Diego*
Edição Impressa 175 - Setembro 2010



© Nelson Provazi


Nos tribunais, quando as evidências são enormes contra o réu e a condenação parece questão de tempo, os advogados de defesa sempre podem recorrer a uma derradeira tática: fomentar uma dúvida qualquer, às vezes sobre um aspecto secundário do delito, para turvar o raciocínio dos membros do júri e, assim, evitar ou ao menos postergar o quanto for possível a sentença. A partir do final dos anos 1980, uma versão desse clássico estratagema judicial – que, dentro e fora das cortes, fora usado eficazmente pela indústria do cigarro durante décadas para negar e minimizar os conhecidos malefícios do tabagismo – passou a ser empregada nos Estados Unidos para questionar a existência do aquecimento global e a contribuição das atividades humanas, em especial a queima de combustíveis fósseis emissores de gases de efeito estufa, no desencadeamento das mudanças climáticas.

Sempre que era divulgado um novo estudo de peso sobre a natureza do aquecimento global, três veteranos pesquisadores de enorme prestígio, abrigados numa entidade privada em Washington, o George C. Marshall Institute, saíam a campo para questionar os novos dados. “Primeiro, eles disseram que as mudanças climáticas não existiam, depois afirmaram que as variações de temperatura eram um fenômeno natural (tentaram atribuir a culpa a alterações na atividade solar) e então passaram a argumentar que, havendo as mudanças e mesmo sendo culpa nossa, isso não importava porque nós sempre poderíamos nos adaptar a elas”, afirmou a historiadora da ciência Naomi Oreskes, da Universidade da Califórnia em San Diego (UCSD), numa palestra realizada para jornalistas latino-americanos durante o 7o Taller Jack F. Ealy de Periodismo Científico, que ocorreu em julho nessa universidade. “Em todos os casos, eles negavam que havia um consenso científico sobre a questão, apesar de serem essencialmente eles mesmos os únicos que estavam contra.”

Ao lado do também historiador da ciência Erik Conway, que trabalha no Instituto de Tecnologia da Califórnia (Caltech), Naomi lançou em maio nos Estados Unidos o livro Merchants of doubt – How a handful of scientists obscured the thuth on issues from tobacco smoke to global warming (“Mercadores da dúvida – Como uns poucos cientistas ocultaram a verdade em temas que vão do cigarro ao aquecimento global”, numa tradução livre para o português). Na obra, muito bem documentada e que recebeu elogios na imprensa leiga e nas revistas científicas, Naomi e Conway, um especialista na história da exploração do espaço, mostram que já existe, e não é de hoje, um consenso científico sobre o aquecimento global, detalham a trajetória dos líderes do instituto e suas táticas de negação das mudanças climáticas. Continua