Por Maria Rita Kehl
04.09.2010
Sabiá lá no sertão/ quando canta me comove./ Passa seis meses cantando/ e sem cantar passa nove./ Porque tem a obrigação/ de só cantar quando chove.
(Manuel Xudu)
Maldito sabiá. Enlouqueceu com o clima. Às 4 da madrugada sou acordada pela harmonia bossa-nova de seu canto. Familiar. Brasileiro. Repetida à exaustão, a velha canção do exílio do sabiá lembra uma dessas vinhetas musicais com que o serviço de atendimento da Net, ou da Telefônica, tortura o cliente até que ele desista da queixa que pretendia fazer. O sabiá não sabe do estatuto de metáfora que atribuímos a seu canto. Talvez nem saiba que canta. O sabiá é. O que consideramos como sua linguagem musical é só uma extensão de seu ser.
O que poderia ser uma breve interrupção do meu sono se transforma em insônia ante a perspectiva de mais uma manhã sem nuvens. Céu limpo, diziam no tempo de meus avos. Limpo? Tempo bom, dizem até hoje as moças da meteorologia na televisão. Bom? Desde quando a tampa cinza-chumbo de monóxido de carbono protegido por um clima de deserto pode ser considerada sinal de tempo bom? Nunca mais quero ler um poema onde a imagem do céu azul metaforize alguma promessa de felicidade.
Os sabiás desnaturados de São Paulo não esperam pela chuva. Cantam em modo de repetição automática durante todo o veranico de agosto que às vezes, como agora, se estende do final de julho até meados de setembro. Sabiás mutantes encarapitados em árvores mutantes que sobrevivem aos rios de automóveis a seus pés, invadem o sono de cidadãos mutantes cujos pulmões já se adaptaram aos novos padrões da chamada qualidade do ar. Ainda bem que o prefeito ainda não consertou aqueles relógios que informam, em cada bairro, a cotação da calamidade. A seca democratiza o mal-estar: ricos e pobres consultam angustiados o céu em busca de sinais de aumento de nebulosidade. Uma nova cultura urbana se estabelece entre os paulistanos que aprendem a sentir as menores variações no vento e detectar a distância o cheiro das possíveis frentes frias vindas do Sul, com grandes chances de ser barradas pela massa de ar seco, etc. e tal. Sabedorias trazidas por quem veio do sertão para se refugiar da seca na cidade grande. Continua