07.01.2010
A inesgotável capacidade dos políticos brasileiros de promover os seus interesses e o engenho com que confeccionam as mais escarnecedoras alegações para dar às suas espertezas um verniz de legitimidade de há muito merecem um estudo científico que vá além das abordagens costumeiras da ciência política sobre a herança maldita do patrimonialismo e a impunidade dos donos do poder. Afinal, dificilmente se encontrará no País um grupo estruturado que os supere não apenas em aptidão para a defesa de suas regalias, mas também quando está em jogo a criação e perpetuação de privilégios. Nessas horas, a solidariedade entre os seus membros é monolítica ? os poucos deles que ainda sentem as fisgadas da consciência diante da captura de recursos públicos para o gozo de vantagens exclusivas nem se atrevem a denunciar a lambança de seus pares, nem tampouco abrem mão do quinhão de facilidades que ela lhes proporciona.
O exemplo mais recente desse especioso padrão de comportamento está no Diário Oficial do Senado, de 22 de dezembro. Ali se lê que a Mesa Diretora da Casa deu o dito pelo não dito em relação a um item do pacote pseudomoralizador com que, em abril, ela fingira responder à repulsa da sociedade aos escândalos que a imprensa passara a escavar nos porões da instituição ? e que conduziria à revelação dos famigerados atos secretos, atingindo em cheio o presidente José Sarney. A denúncia de que senadores de diversos partidos ? e também deputados ? utilizavam a cota de passagens aéreas, que se autoconcederam em priscas eras, para transportar parentes, amigos, namoradas e tutti quanti obrigou a Mesa a desembarcar da sua sossegada conivência com a "farra aérea", como a esbórnia se tornou conhecida.
Decerto a contragosto e provavelmente com uma piscadela tranquilizadora aos companheiros aflitos, as excelências decidiram circunscrever os usuários dos bilhetes aos senadores e assessores indicados previamente, e limitar as emissões a cinco idas e voltas mensais entre os seus Estados de origem e Brasília. A intenção manifesta era de reduzir de R$ 15 milhões para R$ 11 milhões o custo do benefício. (Os gastos também teriam de ser publicados na internet. Nunca o foram.) Ficou ainda estipulado, com todas as letras, que "não haverá acumulação (de bilhetes não aproveitados) de um exercício financeiro para o seguinte". Pura tapeação. Em 17 de dezembro, véspera do recesso parlamentar, quando a opinião pública estava olhando para o outro lado, enojada dessa vez com os dinheiros nas meias e cuecas do governo do Distrito Federal, a Mesa baixou um ato administrativo pelo qual os créditos da verba de transporte aéreo disponíveis em 31 de dezembro poderiam, sim, ser usados em 2010. Continua