O império contido numa casca de noz
Aventuras de Antunes Filho na cidadezinha de Grover’s Corner e o que ele encontrou lá
Welington Andrade
“O teatro, na verdade, é um grande playground.
Você se diverte aprendendo a ter consciência plena das coisas.”
(Antunes Filho).
O mais novo espetáculo do Centro de Pesquisa Teatral do Sesc-SP e do Grupo de Teatro Macunaíma,Nossa cidade, o famoso texto do dramaturgo norte-americano Thornton Wilder (1898-1975) “reconstruído” por Antunes Filho, é daqueles programas inadiáveis. Esqueça as outras 120 (!) atrações teatrais em cartaz na capital paulistana (segundo levantamento do guia da Folha de S. Paulo de 4/10) e dê prioridade a essa fascinante aula de teatro contemporâneo na qual o espectador é convidado não somente a experimentar a sensibilidade que emana do fenômeno teatral como também a pensar criticamente sobre ele.
Segundo o pensador húngaro Peter Szondi, “dificilmente há uma obra da dramaturgia moderna que seja ao mesmo tempo formalmente tão arrojada e de uma simplicidade tão comovente no enunciado comoNossa cidade”. Escrito em 1938, o texto de Wilder (com o qual ele ganhou o segundo prêmio Pulitzer de sua carreira) é uma tentativa muito bem-sucedida de superação das contradições do drama moderno, análoga à senda épica trilhada por Bertolt Brecht.
Em um palco inteiramente despido de cenário, sobre o qual há somente uma mesa e algumas cadeiras, um narrador dirige-se diretamente à platéia para apresentar a vida na pequena cidade fictícia de Grover’s Corner, onde moram os Webb e os Gibbs, típicas famílias conservadoras norte-americanas de classe média, de hábitos sedimentados. Em torno deles, transitam os outros moradores do vilarejo: o professor, o regente do coral, a professora, o entregador de jornais, o guarda, uma vizinha… O narrador explica as cenas e os eventos que irão ocorrer no palco, apresenta os personagens e “interpreta” os acontecimentos, tratando esses pequenos episódios como parábolas do sentido máximo da vida.
A presença do eu-épico desse narrador como diretor de cena é um golpe de teatro para o qual o espectador deve estar o tempo todo atento. Em Teoria do drama moderno (1880-1950), Szondi assim analisa essa impactante inovação formal: “[Wilder] liberou a ação da função dramática de constituir a forma a partir do conflito interno, confiando-a a uma nova figura que, fora do domínio dramático, encontra-se no ponto arquimediano do narrador épico e é introduzida na peça como diretor de cena. Na medida em que asdramatis personae se relacionam com ele enquanto objetos de representação, a encenação como momento, sempre oculta no drama genuíno, passa a ser explícita. Nesse contexto, só é permitido falar da ‘destruição da ilusão’ quando esse conceito da dramaturgia romântica não é adotado sem crítica. A ‘ilusão’ dramática designa, em termos de psicologia da recepção, a homogeneidade do drama a formar um mundo, isto é, seu caráter absoluto. A ilusão é destruída se a estrutura do drama é diferenciada em si, se, por assim dizer, a relação intersubjetiva é atravessada e uma outra (supra ou intrasubjetiva) é erigida. (…) emNossa cidade é o diretor de cena quem está consciente de que eles são personagens, ou seja, a relação sujeito-objeto representa uma relação exterior aos personagens: precisamente a relação épica entre o narrador e seu objeto. O resultado da destruição romântica da ilusão é a configuração da perda do mundo real, como a que experiencia o eu que se tornou onipotente; a destruição da ilusão do ‘drama’ moderno, por sua vez, leva à experiência estética do mundo transmitida por toda a poesia épica”.
Na “reconstrução” do texto proposta por Antunes Filho, as intervenções do diretor de cena evoluem dos momentos banais da vida da cidade para um foco mais amplo, no qual se evidencia o domínio do império norte-americano em todo o planeta por meio dos mecanismos de atuação do sistema social, político e econômico e da mentalidade que sustenta esse império mundo afora.
Antunes Filho é um dos grandes diretores responsáveis pela renovação da linguagem cênica brasileira, o principal articulador de um dos coletivos teatrais mais longevos e importantes do país – o CPT – e o idealizador de um método de criação para o ator brasileiro cujas linhas de força advêm da depuração dos maneirismos naturalistas e do poder de sugerir espaços e tempos com a potencialidade de gestos, movimentos e voz. O processo de formação de um ator-criador que passe pelo CPT se dá ao mesmo tempo em um plano estético e em uma esfera de conduta ideológica e espiritual. O foco central é superar o realismo, por meio de uma série de exercícios e de técnicas que busquem um outro conceito de realidade. A filosofia e a pedagogia desenvolvidas por um mestre como Antunes se destinam não somente a atores e aprendizes das artes cênicas como também a todo e qualquer cidadão cujo interesse maior seja a educação dos sentidos, do espírito e da racionalidade crítica em seus aspectos mais amplos. Deste modo, vale destacar o caprichado programa do espetáculo, de 128 páginas, distribuído gratuitamente, no qual o espectador encontrará textos e fotos muito bem editados (e diagramados), cuja função é oferecer subsídios para uma compreensão maior do projeto da montagem. Trata-se de um denso material – essencial para o processo de formação de público – que, hoje em dia, infelizmente, só o Sesc é capaz de produzir.
Daí constituir essa encenação de Nossa cidade uma verdadeira aula de teatralidade e política contemporâneas, conduzida rigorosamente por um diretor que, aos 83 anos, encontra-se em plena atividade criativa. Esqueça o que você já conhece de Antunes e acredita que não quer ver mais no palco: a atuação coral do elenco, a impostação vocal ressonante dos atores, o uso de uma cadeira de rodas como objeto de cena… Resista à tentação de considerar tais elementos lugares-comuns do estilo do diretor. Tudo aquilo que você já sabe (ou pensa que sabe) sobre Antunes é, a rigor, fruto de uma falsa consciência que acredita que a novidade e a transgressão são fórmulas em si mesmas, e não processos que demandem continuidade e repetição.
Os espetáculos que o diretor tem realizado nos últimos 35 anos pelos palcos do Brasil e do mundo (sua guinada experimental ocorreu com Macunaíma, em 1978) carregam o tom da pesquisa mais conseqüente, da inquirição mais inquietante, da verdade mais penetrante. Nós, que estamos mergulhados em um mundo de saciedades imediatas e satisfações espetaculares, espraiadas em livros, peças e filmes dos mais previsíveis – que confundem consciência crítica com indignação farisaica e humor ácido com indigente comicidade –, deveríamos sair do espetáculo reconhecendo que cada elemento usado reiteradas vezes por Antunes pede para ser interpretado, embora não pareça admiti-lo. Em vez de especularmos sobre um suposto esgotamento criativo do diretor, devemos usufruir a extrema plasticidade advinda das formas corais assumidas pelos atores, da técnica vocal desenvolvida por eles e da mobilidade parcial exercida por uma cadeira de rodas.
Por fim, e não menos importante, nós, bem-pensantes que temos uma opinião abalizada sobre os principais fatos políticos que nos cercam (dos conflitos do Oriente Médio à presença de médicos cubanos em nosso território), deveríamos sair do Teatro Anchieta nos perguntando por que razão, afinal, o narrador nos conta a experiência de duas famílias (que muito bem poderiam ser as nossas), lançando mão de uma cientificidade irônica e precisa, que parece interpretar tudo a priori por nós. E por que, afinal, esse narrador-diretor de cena tem o poder de restituir aos mortos o seu passado. Não estariam Thornton Wilder e Antunes Filho dispostos a nos oferecer uma outra perspectiva de viver, morrer e narrar bem mais complexa e provocadora do que aquela presente no modo alienado e alienante como percebemos tais experiências?
Ir ao centro dessa cidade implica sair da zona de conforto e querer mergulhar fundo na questão.
Nossa Cidade
Onde: Teatro Anchieta – Sesc Consolação – R. Dr. Vila Nova, 245, Vila Buarque – São Paulo
Quando: até 08/12
Quanto: R$ 32
Info.: (11) 3234-3000