quarta-feira, 30 de outubro de 2013

'Se o Brasil manejar Aids entre gays, estará perto do fim da epidemia'


JC e-mail 4844, de 29 de outubro de 2013
'Se o Brasil manejar Aids entre gays, estará perto do fim da epidemia'


Número 2 do Programa de Aids das Nações Unidas (Unaids), o brasileiro Luiz Loures alerta para a volta do crescimento da doença entre homossexuais e pede a revisão de parâmetros de tratamento no país e no mundo

O vice-diretor do Programa de Aids das Nações Unidas (Unaids), o brasileiro Luiz Loures, é um homem com uma missão: decretar o fim da epidemia até 2030. Não da Aids, como ele sempre gosta de frisar, mas da epidemia da doença. Para o infectologista, basta olhar para os grandes avanços obtidos tanto na prevenção quanto no tratamento nas últimas décadas. O número de novos casos, para se ter uma ideia, caiu em um milhão em menos de dez anos. E a quantidade de gente em tratamento cresceu exponencialmente no mesmo período. Surpreendentemente, no entanto, a infecção volta a crescer no mundo inteiro entre os homossexuais masculinos - o primeiro grupo a ser atingido em cheio pela doença e também o primeiro a dar uma resposta social ao problema. Segundo Loures, para que sua meta seja cumprida, é preciso repensar as estratégias de combate à Aids.

O senhor costuma ser otimista. Acha que até 2030 já poderemos falar no fim da epidemia?
Eu sou um otimista mesmo. Acho que até 2030 já podemos estar falando em fim da epidemia. Não no fim da Aids, claro. Mas da epidemia. Para isso, no entanto, é preciso haver renovação nas estratégias de combate à doença. É como se a epidemia, de certa forma, estivesse se adaptando aos progressos que fizemos. Então, temos que inovar.

De que forma?
Precisamos mudar a rotina de tratamento, tratar imediatamente a população mais vulnerável. Não esperar a contagem das células CD4 (células do sistema imunológico) cair, mas tratar imediatamente. Já sabemos hoje que o tratamento é importante para a sobrevida e a qualidade de vida do paciente, mas também como forma de prevenção. Quem se trata não transmite. Felizmente, claro, não temos pessoas morrendo de Aids o tempo todo. Mas, por conta disso, a percepção de risco de um jovem gay hoje não é a mesma dos anos 80 e 90. Então temos que adaptar as estratégias.

Há uma tendência global de aumento da doença entre os gays. Por que isso está ocorrendo justamente entre o grupo que primeiro foi mais atingido e que respondeu bem à epidemia nos anos 80?
Eu não sei. Devolvo a pergunta para você. Falta a inserção do assunto como prioridade para a comunidade gay. E só faz aumentar. Está acontecendo na Europa, nos Estados Unidos, na China e na África. A tendência é ascendente em toda parte. É preciso que o tema seja tratado com a importância que tem. Há muita ênfase no debate sobre o casamento gay e pouca para esta questão.

A discussão sobre o casamento gay em várias partes do mundo não é um avanço? Não é um sinal da redução da discriminação?
É claro que é um avanço. Mas, com toda a discussão que está rolando hoje no mundo, não há evidência da redução da discriminação, pelo menos não entre aqueles sujeitos mais vulneráveis. Na última reunião da Organização Mundial de Saúde (OMS) houve uma proposta de se colocar como um item da agenda a questão da saúde LGBT (lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros). E não passou. Houve um bloqueio. O casamento gay é um avanço social muito importante. Mas por que não conseguimos também discutir a saúde como um item de agenda da OMS? É um paradoxo.

É uma surpresa essa tendência de aumento da epidemia entre os homossexuais?
Não sei se é surpresa. Talvez nem seja. Os fatores que contribuem para isso continuam existindo e levando a epidemia à frente. Para se ter uma ideia, os países que mais recebem dinheiro internacional para a Aids são os mesmos que criminalizam a relação entre pessoas do mesmo sexo - alguns deles, inclusive, com pena de morte. Meus amigos gays vão me matar por dizer isso, mas a verdade é que precisamos de mais engajamento. Fora isso, eu não tenho outra coisa a fazer a não ser propor uma nova estratégia de tratamento.

Inclusive para o Brasil? Há também uma tendência de aumento da doença entre os jovens homossexuais no país?
Sim. No Brasil, cerca de metade dos novos casos da doença ocorre entre homossexuais jovens. E o país, que foi o pioneiro na universalização do tratamento, tem agora uma nova possibilidade concreta de ser o primeiro país do mundo a decretar o fim da epidemia; se conseguir manejar a questão entre os gays. E isso é uma chance histórica, uma oportunidade única.

Qual seria o impacto para o país de passar a tratar imediatamente a população de risco que testasse positivo? O país tem como arcar com isso?
Isso representaria, no Brasil, umas 100 mil pessoas a mais. Atualmente, cerca de 300 mil recebem o coquetel. O país tem como arcar com isso. Precisamos que o Brasil, mais uma vez, seja pioneiro e que seja o primeiro país do mundo a começar a tratar imediatamente todas as populações vulneráveis.

(Roberta Jansen/O Globo)