sábado, 26 de outubro de 2013

Testes em animais: questão humanitária


JC e-mail 4842, de 25 de outubro de 2013
Testes em animais: questão humanitária


Comunidade científica defende a experimentação com animais e rechaça invasão do Instituto Royal

Primeiro pesquisador a desenvolver uma vacina antirrábica, Louis Pasteur (1827-1895) contribuiu enormemente na validação de métodos científicos com testes em animais; Carlos Chagas (1878-1934) fez experiências com saguis e insetos em seus estudos sobre a malária e na descoberta da doença de Chagas; a vacina contra a poliomielite só foi possível graças a pesquisas que Albert Sabin (1906-1993) fez em dezenas de macacos. Em comum, esses três cientistas têm, além do renome internacional, o fato de terem entrado para a história pela grande contribuição ao avanço da ciência para o benefício da humanidade.

Ao contrário, o clamor causado pela invasão do Instituto Royal, em São Roque, a 59 quilômetros de São Paulo, na madrugada do dia 18 de outubro, encara pesquisadores da mesma forma que vê torturadores ou traficantes de animais. Experimentação científica não é farra do boi, briga de galo ou tourada para que cientistas sejam tratados pela opinião pública como criminosos.

Durante a invasão, ativistas contrários à utilização de animais em pesquisas científicas levaram do instituto 178 cães da raça beagle e sete coelhos, deixando para trás centenas de ratos. "É um grande equívoco, irresponsabilidade e desconhecimento da realidade ir para a mídia afirmar que os animais não são mais necessários para a descoberta de novas vacinas, medicamentos e terapias", alertou Renato Cordeiro, professor titular da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz).

Em carta aberta divulgada no último dia 22, a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e a Academia Brasileira de Ciências (ABC) lembram da importância da experimentação com animais. "Na história da medicina mundial, descobertas fundamentais foram realizadas, milhões de mortes evitadas e expectativas de vida aumentadas, graças à utilização dos animais em pesquisas para a saúde humana e animal", diz o texto assinado pelos presidentes das entidades, Helena Nader e Jacob Palis, respectivamente.

Renato Cordeiro citou algumas dessas descobertas: o controle de qualidade de vacinas contra a pólio, o sarampo, a difteria, o tétano, a hepatite, a febre amarela e a meningite foram possíveis a partir desse tipo de experimentação. "Testes com animais também foram essenciais para a descoberta de anestésicos, de antibióticos e dos anti-inflamatórios, de fármacos para o controle da hipertensão arterial e diabetes", relacionou, lembrando ainda de medicamentos para controlar a dor, a asma, para tratamento da ansiedade, dos antidepressivos, dos quimioterápicos, e dos hormônios anticoncepcionais.

Mais do que isso, os próprios animais têm sido beneficiados com os avanços da ciência no campo da terapêutica e cirurgia experimental. O pesquisador destaca as vacinas para a raiva, a cinomose, a febre aftosa, as pesquisas com o vírus da imunodeficiência felina, a tuberculose e várias doenças infecto-parasitárias.

Outra associação de pesquisadores, a Federação de Sociedades de Biologia Experimental (FeSBE), também divulgou manifesto expressando repúdio à invasão do Instituto Royal. De acordo com o texto, a sociedade quer que a qualidade de vida e a saúde animal evoluam no mesmo ritmo. "A pesquisa científica tem respondido a essa demanda, mas é preciso que o obscurantismo seja erradicado do nosso meio para que a sociedade possa usufruir dos recentes avanços científicos e dos que ainda serão produzidos", diz o manifesto.

No mesmo sentido, Cordeiro cita trabalhos que estão sendo desenvolvidos em laboratórios brasileiros. "Eles visam à descoberta de vacinas e medicamentos para a malária, a Aids, dengue, tuberculose e outras doenças. Poderíamos dizer que os animais experimentais são grandes responsáveis pela sobrevivência da raça humana no planeta", argumenta.

Embora técnicas sofisticadas e equipamentos com alta tecnologia sejam necessários para algumas dessas pesquisas, o uso de animais de laboratório ainda é necessário para sua execução. "Em virtude da complexidade da célula biológica", explica. Pesquisadores já desenvolvem esforços na busca de métodos alternativos para que algum dia os animais não sejam mais necessários nesse processo. No entanto, somente em alguns poucos casos, a Biologia Celular e Molecular oferece essa possibilidade. "Através de técnicas de cultura de tecidos e simulações computacionais", esclarece.

Bem-estar animal na ciência

Num ponto, cientistas e ativistas invasores concordam: os animais não devem sofrer. Como ainda não existem métodos capazes de substituir o teste em animais em uma série de pesquisas fundamentais para o futuro da humanidade e para a saúde e sobrevivência do ser humano, o que está sendo feito em vários países é a regulamentação e a fiscalização dessas ações para minimizar o sofrimento dos bichos e avaliar a relevância dos estudos para a humanidade.

No Brasil, o responsável por estabelecer essas normas é o Conselho Nacional de Controle de Experimentação Animal (Concea), órgão integrante do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, do qual Cordeiro foi o primeiro coordenador. Hoje, o Concea é coordenado por Marcelo Morales, um dos secretários da SBPC e também da FeSBE.

Um grande marco ocorreu com a aprovação da Lei Arouca (11.794/2008), que regulamentou a criação e utilização de animais em atividades de ensino e pesquisa científica. Além de ter criado o Concea, a nova lei obrigou as Instituições de Pesquisa a constituírem uma Comissão de Ética no Uso de Animais (Ceua).

Essas comissões são componentes essenciais para aprovação, controle e vigilância das atividades de criação, ensino e pesquisa científica com animais, bem como para garantir o cumprimento das normas de controle da experimentação animal. "As Ceuas representam uma grande mudança de cultura na ciência e são formadas por médicos veterinários e biólogos, docentes e pesquisadores na área específica da pesquisa científica, e um representante de sociedades protetoras de animais legalmente constituídas e estabelecidas no país", diz o ex-coordenador do Concea.

Esses representantes têm atuação importante nesse processo. "São profissionais muito qualificados, com formação em nível de doutorado, e têm dado excelentes contribuições nas discussões e deliberações do Concea", avalia Cordeiro. Considerada a bíblia dos laboratórios de pesquisa, a Diretriz Brasileira para o Cuidado e a Utilização de Animais para fins Científicos e Didáticos (DBCA) foi citada pelo pesquisador como um dos recentes exemplos de competência dos membros do colegiado.

(Mario Nicoll / Jornal da Ciência)

Este texto foi publicado na página 4 do Jornal da Ciência impresso que traz a repercussão da invasão ao Instututo Royal na comunidade científica. O acesso está disponível em http://www.jornaldaciencia.org.br/impresso/JC748.pdf