domingo, 28 de novembro de 2010

A esperança como dever ético

Via Contemporânea
Por Carla Rodrigues

Nesse artigo brilhante, o antropólogo Luiz Eduardo Soares afirmar que sempre manteve com jornalistas uma relação de respeito e cooperação.

É tudo verdade.

Acessível, gentil, e professoral sem ser por isso pretensioso, ele sempre esteve disponível para conversar sobre a situação da violência no Rio de Janeiro. Tive o privilégio de entrevistá-lo a respeito na época do lançamento de “Cabeça de porco”, um dos muitos livros dele que ocupam a minha estante. Recupero aqui não apenas por me parecer que suas afirmações de cinco anos atrás ainda são pertinentes, mas sobretudo por ter estar estarrecida com a conjugação entre espetacularização da violência, governo forte, classe média assustada e um impressionante desejo de morte.

Talvez porque me recuse a acreditar que os esfarrapados que fugiram da Vila Cruzeiro sejam o único problema, e certamente por compartilhar com Luiz Eduardo da percepção de que, como aqueles, há um imenso estoque de reposição: jovens entre 15 e 24 anos, pobres, negros, moradores de favelas e periferias são o alvo principal dos 45 mil homicídios dolososos que o país registra por ano.

Nesta entrevista concedida em 2005, ele explicava como funciona o mecanismo que mantém invisíveis os jovens pobres que se alinham ao tráfico, aos quais a sociedade não tem poder de atrair e afirma que o Estado não tem o direito de apostar na reincidência, negando o direito de recuperação a estes meninos. Repetindo o título de um capítulo de “Cabeça de porco”, ele diz: “A esperança é um dever ético.”

Como a violência pode ser explicada pela invisibilidade?

É claro que todos esses processos são muito mais complexos e envolvem outras variáveis, mas é possível descrever o fenômeno que interessa com mais simplicidade, chamando atenção para alguns fatores que são mais relevantes e têm sido negligenciados sempre, porque a nossa leitura tende a ser muito economicista e muito unidimensional. Estamos falando do fenômeno decisivo para a violência criminal letal no Brasil que é a reprodução do tráfico. Não é propriamente o tráfico de armas e drogas, mas sua extraordinária capacidade de se manter, revigorando-se, fortalecendo-se no processo, recrutando jovens todos os dias. Esse é o ponto chave. O tráfico de armas e drogas é a matriz criminal letal mais grave, a que se tem se expandido com maior velocidade, provocando as conseqüências mais dramáticas. O tráfico se nutre dessa garotada, que é seu exército de reserva. Como é possível recrutar tanta garotada todos os dias? Se nós entendermos isso, talvez sejamos capazes de interceptar essa dinâmica, impedindo que ela se desdobre, interrompendo a realimentação, esfriando o tráfico, mesmo sem propriamente combatê-lo de frente. De tal modo que nos credenciamos a disputar com o tráfico, constituindo focos de atração, de sedução, de cooptação alternativos, na direção positiva, como se fossem focos gravitacionais alternativos em competição. Se pudermos constituir essas fontes de atração nós também nos credenciaremos a vencer essa batalha, sem a batalha.

Qual é a cena chave dessa invisilibidade?

Em geral é um menino, um menino mesmo, não é menina, bem jovem, pela primeira vez aponta uma arma para alguém. Já conversei com muitos desses meninos. A cena é previsível e pode ser desenhada de uma forma caricata assim: esse menino, que recebe essa arma do traficante, é um ser socialmente invisível por duas razões. Porque nós não o vemos, nós sociedade o negligenciamos, acho que todos reconhecemos que isso acontece. Passamos pelas ruas como se eles não existissem, mesmo que eles dirijam a nós a palavra, fechamos o vidro do carro, negligenciamos a sua presença. Ou projetamos sobre eles um estigma, um preconceito, um rótulo, que é uma outra forma de negar sua existência enquanto pessoa. Quando projetamos sobre alguém um preconceito vemos o reflexo da nossa intolerância, o retrato da nossa própria limitação e não a pessoa, que está ali sendo dissolvida e substituída pelo ódio. Continua