sábado, 6 de novembro de 2010

A reinterpretação do cérebro

Via Pesquisa FAPESP Online
Ricardo Zorzetto
Edição Impressa 176 - Outubro 2010



“Antes de eu me envolver nesse
 assunto,  já havia evidências de que
 deveriam existir  células se dividindo no
cérebro depois da fase de
desenvolvimento, mas muita gente não
acreditava”
 © instituto salk para pesquisas biológicas

O mundo parou para repensar o que se sabia sobre a estrutura e o funcionamento do cérebro quando o neurocientista norte-americano Fred Gage publicou em 1998 na Nature Medicine as primeiras evidências sólidas de que o sistema nervoso central humano continua a gerar novas células depois de adulto. Resultado de anos de trabalho das equipes de Gage e de outros pesquisadores, a constatação marcou uma fase de descobertas que abalaria o conceito de estrutura e evolução do cérebro proposto quase um século antes por Santiago de Ramón y Cajal.

Médico e histologista espanhol, Ramón y Cajal identificou a arquitetura microscópica do sistema nervoso central e afirmou que, uma vez encerrada a fase de desenvolvimento, o cérebro se tornaria fixo e imutável, já que a “fonte de crescimento e regeneração” das células cerebrais secaria definitivamente. Doze anos atrás Gage conquistou seu lugar na história da ciência ocidental ao mostrar que essa ideia não era mais válida – ao menos não para todo o cérebro.

Desde que confirmou a proliferação de células no cérebro adulto, fenômeno conhecido como neurogênese e descrito em cooperação com o sueco Peter Eriksson, Gage não parou de criar novos experimentos para identificar a função desses neurônios jovens.

Considerado um dos mais influentes neurocientistas da atualidade, Gage coordena um laboratório com cerca de 40 pessoas no Instituto Salk, na Califórnia, de onde já saíram pouco mais de 600 artigos científicos, citados por 57 mil outros trabalhos.

Em visita à cidade mineira de Caxambu, onde participou em setembro do XXXIV Congresso da Sociedade Brasileira de Neurociências e Comportamento, Gage contou como confirmou a neurogênese em adultos e falou dos projetos em andamento.

Seu interesse pela capacidade do cérebro adulto de gerar novas células surgiu ainda durante a graduação?

Foi um pouco mais tarde. Quando eu era estudante de graduação, estava interessado em descobrir como o cérebro adulto reage a lesões. É a chamada neuroplasticidade em adulto, que comecei a investigar nos anos 1970, quando ainda se acreditava que o cérebro fosse praticamente imutável após o desenvolvimento. Nessa época experimentos começaram a mostrar que o cérebro talvez tivesse alguma capacidade de recuperação após sofrer danos.

Já naquele tempo?

Sim, já naquela época. Não era ainda a capacidade de produzir novos neurônios. Mas, se um neurônio fosse cortado, parecia ser capaz de crescer novamente, de brotar. Como era um crescimento muito limitado, pensamos: “Se eles podem crescer um pouco, talvez seja possível fazê-los crescer mais”. Assim que se passou a estudar isso melhor, percebemos que a plasticidade era maior ainda. Eu tinha 18 ou 19 anos quando fui trabalhar em um laboratório e começou a ficar claro que o cérebro tinha muito mais capacidade de se recuperar do que imaginávamos. A descoberta de que novos neurônios poderiam surgir ocorreu bem depois.

O senhor chegou lá a partir desses trabalhos dos anos 1970?

Não foi tão linear assim. Eu estava ocupado tentando compreender qual a capacidade de regeneração de diferentes áreas cerebrais. Antes de eu me envolver nesse assunto, já existiam evidências ou, ao menos, artigos publicados dizendo que deveria haver células se dividindo no cérebro adulto. Mas muita gente não acreditava. O pesquisador que descobriu esse fenômeno, Joe Altman, ainda está vivo, mas abandonou a área cedo porque ninguém acreditava nele. Continua